sábado, 15 de março de 2014

Memória

mermaid hair | via Tumblr


Meu amor, escrevo-lhe à luz da lua, em meio ao inferno que este mundo está se tornando. Olho para  frente, para trás e para os lados e as dunas que vejo parecem-me mais como vendavais desfeitos por uma força maior. Das muitas coisas ao meu entorno, poucas tocam o meu coração, acendem-me as pupilas, fazem o meu sangue correr. De nada me vale esta lua se carrego de ti apenas uma foto manchada e uma lembrança nítida de tuas maçãs do rosto. Querida, estaria triste se ainda houvesse em meu coração qualquer coisa além do desejo absurdo de lembrar de ti a cada milésimo de segundo, para que assim, eu não te esqueças jamais. Eu sinto saudades. Os olhos da memória me falham, talvez eu te veja mais bonita agora. Já não enxergo tuas veias saltando dos braços ou teus olhos fundos de dor.  Já não encontro  mais nas dunas as tuas rugas na testa. Tudo que me resta é uma foto tua, quase tua. E ainda sou teu, foi tudo que me restou: esta certeza. Enquanto não vejo tuas mãos delicadas e teus cabeços bagunçados, eu te imagino, te pressinto, pois o tempo passou, você deve estar diferente na minha memória também. Te reinvento todos os dias para que eu nunca me esqueça. E principalmente para que nunca esqueças, meu amor, você ainda é tudo que eu tenho.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Carta


Untitled

Querido,
venha me salvar. As lâmpadas não acendem mais. Acho que cortaram a luz. São muitas contas a pagar- não que me falte dinheiro, falta força de vontade. Ou. Não sei.  Aquele algo que você dizia fazer o corpo funcionar. Eu perdi, você achou? Você costumava achar qualquer coisa pra mim. Perdi coisas mais importantes do que sapatos ou as chaves, devo confessar. Nunca mais fiquei ansiosa pra fechar as portas do apartamento, com medo, você lembra? Nunca mais depois que você foi embora. Se você me visse agora, arrastando os pés por esse apartamento porque dói demais pisar no chão, será que você me explicaria o que houve? Ou o que não houve? Durmo de portas e janelas abertas na esperança de você vir brigar comigo falando mais uma vez que eu sou desapegada da vida. Precisava ver agora. Mas não entrou ninguém aqui, uma pena, nem você. Passo a maior parte do dia dormindo de olhos abertos, às vezes eu queria que alguém chegasse gritando, socando as paredes, chutando os móveis, qualquer coisa pra eu despertar. Virei um fantasma de você, querido, onde estão as respostas?  Você me deixou sem nada. Todas as manhãs quando acordo, me pergunto se você ainda toma seu café forte, ou se por um milagre aprendeu a gostar de leite. Nunca entendi. Às vezes eu preferia que você tivesse morrido. Por que teve que ser eu? As pessoas dizem que você não gostava de mim. É verdade? Porque as portas do armário continuam abertas sem nada dentro do jeito que você deixou. Acho que a minha mãe varreu a casa, eu lembro de estar tudo sempre tão imundo aqui. Passei seis meses dizendo pra minha mãe e pro porteiro que você tinha ido em busca do motivo que eu disse pra você que queria encontrar, eu tive certeza de que você tinha ido achar pra mim, por uns seis meses ou seis anos eu tive certeza.  Não consegui abandonar a casa, você parou a nossa vida ao meio e eu fiquei buscando pistas nesse cubículo. Nem um bilhete você deixou. Eu deveria te odiar, mas nem isso você me permitiu. Fiquei tentando encontrar o motivo que você não trouxe. Cortaram a luz, querido, mas minha mãe vai pagar a conta pra mim. Ela sabe de tudo e eu desaprendi tudo. Acho que daqui uma semana vou embora. Cheguei a arrumar minhas coisas outro dia, mas não achei a sandália que você me deu de aniversário e perdi a coragem. Não me movo daqui sem achá-las. As pessoas não entendem. Elas acham que você não gostava de mim. Vou embora porque nem eu sei. Preciso encontrar tudo que você levou de mim. Muito mais importantes que as sandálias ou as chaves. Eu preciso do motivo, querido, e agora finalmente sei que não posso mais contar com você.

sábado, 8 de março de 2014

A salvo

Loving ✿ | via Tumblr


As vozes as cores os cheiros
Nada existe pra mim
As xícaras os livros as colchas
Nada existe pra mim

Os vultos as pessoas as nuvens
Tudo passa por mim
As letras as frases os gritos
Jamais saem de mim

A vida essa coisa estranha
Vida eu sinto muito
Mas você também não existe pra mim

O que sobra são
Pratos copos prateleiras
Que também não existem pra mim

E toco tudo e cheiro tudo
E os vultos vão passando e se curando
Se curando se passando
Dessa triste solidão que é a vida

Os garfos as facas nuances entrelinhas
Nada fala por mim
A vida essa triste eterna solidão

Das coisas por elas mesmas
E tudo sozinho e tudo apodrecendo
E duas mãos entrelaçadas e muito
Dióxido de carbono

E tudo sem sabor sem toque
Sem refrão sem suavidade sem nada
E os copos xícaras talheres
Sem nada

Nada existe pra mim
Sou o vulto do mundo
E ninguém sopra vida em mim
Ninguém me salva de não existir

Mas hoje olho os tapetes janelas cortinas
Sou todos eles e sonho e sonho e sonho
E estou a salvo