sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Quando a realidade pede uma trégua (uma história qualquer)


O relógio marca 22 horas. Pego aquele velho relógio que ela me deu no dia do meu aniversário há 2 anos atrás. Estou atrasado. Com meu GPS na mão, vou pro carro pra finalmente tentar encontrar o local da festa. É a minha formatura. Depois de dobrar em muitas esquinas erradas, finalmente chego. Tudo muito bonito, fica difícil até para uma pessoa como eu, desligada, não reparar nos detalhes.
Poso para algumas fotos com uns velhos amigos. Muita coisa mudou, outras continuam sempre as mesmas. O Jorge continua usando a mesma gravata verde-limão que o avô deixou pra ele antes de morrer, e olha que já faz uns bons anos. O Felipe mantém os mesmos sapatos de todas essas ocasiões especiais. E eu, bem, esse relógio de couro que uso, um pouco descascado, foi ela que me deu. No tempo em que eu ainda pensava que ela era minha. Falando nela...
-Matheus, seu imbecil! Deixou o carro aberto de novo, me dá aqui essas chaves. - disse rindo, se apressando para pegar as chaves do meu bolso e me dando um beijo na bochecha.
Ela ainda me deixa sempre bobo desse jeito, incrível. Está linda, ainda mais vestida de preto. Mesmo tentando ser discreta ela nunca passa despercebida. O único problema é que sou eu que tenho que disfarçar minha cara de surpreso toda vez que ela aparece desse jeito.
-Vou pegar uns drinques para nós! –Jorge falou dando um aceno com aquela cara de pretensioso tentando não tirar uma com a minha cara pelo menos uma vez nesses últimos anos.
Ana volta com as chaves, me jogando bem rápido sua bolsa e pedindo pra eu colocar na nossa mesa que ela já voltava.
Uma hora ou duas depois (eu já mais pra lá do que pra cá...) vou procurá-la. É um hábito: nunca consegui me acostumar a perdê-la de vista. Apesar disso já ter acontecido umas boas vezes, quando ela arrumou uns namorados. Mas não há nenhum cara em volta dela hoje.
-Ana, você sumiu, esqueci de te falar como você tá linda! (não consegui controlar)
-Que novidade, Matt, você sempre diz a mesma coisa.
Ela está descalça. É tão engraçado como ela não consegue ficar até o fim da festa de salto, e eu a adoro por isso. E por tudo. Por ser tão “não estou nem aí se estão olhando”. Que nem daquela vez que ela saiu do banheiro do restaurante que a gente tinha ido num feriado e eu tive que avisá-la que ela estava com papel higiênico na sandália. Ela riu, fez aquela cara de sonsa que só ela sabe fazer, e disse ‘Oras, você esperava que eu estivesse com o que?’

Então, antes que eu pudesse ao menos pensar, ela me pega e começa a dançar uma valsa comigo, tentando fazer uma cara séria enquanto piscam vários flashes daqueles fotógrafos para nós.
Enquanto ela encosta a cabeça em meu ombro sinto o cheiro do perfume que ela usa. Eu mesmo comprei, no seu aniversário de 18 anos, naquele dia que ela fez cara de criança recebendo doce, dizendo que eu era o melhor amigo que ela já teve (ela falava nesse perfume tinha uns 6 meses). E olha que Ana só me disse isso 2 vezes na vida: a outra foi num dia que estava caindo um temporal. Ela tinha terminado com o namorado e estava parada num ponto de ônibus com um guarda-chuva na mão lá perto de casa. É claro que eu fui buscá-la. E ainda aluguei vários filmes pra gente ver. Diferente de todas as mulheres que conheço, ela não deitou no meu colo e ficou chorando, muito pelo contrário, desceu o pau nele. Nunca foi muito de demonstrar as emoções, se é que me entende, mas eu sabia que ela estava chateada. Ana... sempre usando a raiva pra disfarçar todo o resto.

-Matt, deixa eu ajeitar a sua gravata.
-Você sempre faz isso, mulher.
-Não se pode perder os costumes! –disse com aquele sorriso de ponta a ponta que eu tanto amava e pegando mais um drink. Ela não sabia mesmo parar. Pena que sou suspeito pra dizer isso a ela.

O que ela não sabe é que eu preservo a nossa amizade por puro medo de perdê-la de vista. Porque eu sei que amanhã ela vai aparecer com outra pessoa, me ligando e contando como ele é. E eu escuto. Eu agüento. Porque mesmo sabendo que ela não gosta de mim desse jeito, eu gosto dela mesmo assim. E é melhor que nada.
Uma vez ela estava tão brava comigo por eu ter falado umas boas verdades pro pior namorado que ela já teve em uma festa de fim de ano, que quebrou uma taça cheia de vinho bem perto da minha cabeça. Ela é louca, sim. E manchou toda a minha camisa nova, mas tudo que eu sabia dizer era “deixa eu olhar pra você”.

Já é fim de festa e estamos dançando a umas boas horas. Perdemos a noção de tudo. Tenho idéia das fotos que veremos depois. E as que eu tenho certeza que ela vai revelar e me dar de presente (sempre as piores). Deus, Ana é tão previsível!
Então, inesperadamente, quando digo a ela que não estou me sentindo bem e que acho que vou pra casa, ela pega a minha mão e chega bem perto. Olha nos meus olhos e me beija. Me pega assim, tão desprevenido. O mundo para por alguns segundos. Coitado de mim, seria zoado o resto da vida pelos meus amigos se pudessem ler meus pensamentos.
Quando abro os olhos, está louca da vida rindo. E ainda diz, com o mesmo sorriso: ‘Bom, dessa vez eu não vou embora sem você. Vamos, eu te deixo em casa!.”
E meio que tropeçando, fomos pro carro. Ela liga o rádio e está tocando a música que sempre cantamos juntos. Mas é claro que eu não estou em condição alguma de cantar ou mesmo de me lembrar o nome da música. Ana canta mesmo assim, com o cabelo voando no rosto. Me deixa na porta de casa sem dizer nada, mas quando estou quase entrando, ela assovia, dá uma piscada e diz: “Ei, eu te amo!”

Deito na cama. São 5:19. Acho que era esse o nome da música. É claro que estou com medo dela não se lembrar amanhã. Ou de se fingir de desentendida, pra variar. Mas quem liga pra isso? Eu gosto mesmo é de olhar pra ela.....