quinta-feira, 14 de março de 2013

Os tais dos morangos

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O café já esfriava. Olhava de um lado para outro, mexia a colherinha vagando em doces deletérios. Agora estava muito doce, mas antes era tão amargo, queixou-se. De amargo já não bastava a si próprio.
-Posso me sentar aqui?
Nem levantou os olhos, mas sabia pela leveza da voz quem ali se encontrava. Nada disse. Não havia nada a ser dito.
-Como você está?
-Eu? Ah, estou. Não?
A mulher encolhida na cadeira soltou um longo suspiro, mais para preencher aquele silêncio cravado como unhas na pele.
-É só uma conversa, você pediu para eu vir.
Aquele homem começou a tremer, e veja bem, fazia sol, meu bem, fazia um sol danado, fazia tanto sol que era difícil até enxergar algo. Não que já não estivesse meio cego.
-Pedi- e pela primeira vez olhou-a, mas não conseguiu vê-la.
-Então...-ela certamente começara a dizer algo, mas ele interrompeu.
-Quantos anos se passaram desde que?- a palavra faltou. Desde que. Algumas coisas não cabem nos nomes.
-Já fazem quatro anos. Você lembra? Sentados aqui. Você rabiscou alguma coisa no meu braço, eu te dei um tapa e você disse que nunca ia me perdoar. -riu.
-Você também não me perdoou. -sorriu triste, mas firme.
-Como não? Aqui estou.
-Você nunca está. Procuro em tanta gente um espelho teu. Não vejo nada, eu não vejo nada.
O olhar da moça encontrava-se distante, perdido.
-Quero ir embora- disse repentinamente.
-O que te impede?
-Eu não sei.
-A gente nunca sabe.
(Silêncio).
-Faltam uns cinco minutos pro sol se pôr.
-Quanto tempo faz desde que.
-O tempo não existe.
-Ultimamente acho que nem eu- e havia nele algo tão cansado, mas tão cansado, que aparentava mais estar com uns noventa anos.
-Hein?
-Existe um pedaço de mim, alguma coisa podre, um tumor, é isso, eu tenho tumor na alma, um lixo que nunca consigo arrancar, tirar fora do peito, isso está me matando, você entende, existe uma coisa que dorme dentro de mim até mesmo quando estou acordado, sabe, você vai embora agora mas por favor volta, faltam só dois minutos pro sol se pôr e vai ficar tudo escuro e esse cheiro de mofo doentio tá me deixando mal, eu sou um morango mofado, estraguei, assim, fora de época. Tá vendo aquela gaveta ali, demorou tanto tempo pra arrumar. -parou de falar, como se subitamente tivesse tomado consciência de sua voz.
-Desculpe. Acabei perdendo um amigo no meio dessa amargura. Você devia falar isso pro seu analista, eu não sou ninguém meu caro, nada, nadinha meso, olha só, nem aqui eu tô. Não sei onde errei, mas a gente nunca sabe né, sei que eu me fui, desculpa ter deixado minhas coisas espalhadas, é que eu achei que ia vir um vento sabe, um furacão, coisa do tipo, e ia levar tudo embora.
-Mas tudo ficou, esse gosto de mofo, esse cheiro de mofo. Você gostava tanto de morangos. Sinto muito, eu plantei um pé deles aqui fora mas não cresceu nada sabe, nadinha, nem um moranguinho só, aí eu falei pra você vir, faz quatro anos que eu plantei e nada de você chegar, aí eu te liguei, não conseguia parar de chorar, o pé secou, tadinho dos morangos, nem nasceram e mofaram, nem existem e são podres, aí eu te liguei, mas se você quiser ir tudo bem. Vai chover, o sol acabou de se pôr, quem sabe não vem por aí aquele vento que você falou.
-Olha lá, uma estrela, apontou, faz um pedido, reza, chora, ah lá outra estrela. São tantas.
- Elas parecem tão iguaizinhas, coitadas, já morreram.
-Mas ainda estão brilhando, olha você, meio morto assim, seus olhos ainda brilham mais do que elas, olha lá, elas tão brilhando pra você.
-As estrelas não sabem da minha existência.
-E daí, e daí, disse meio impaciente, o importante é o espetáculo que elas fazem, mesmo longes e mortas, veja só, você também.
-Você não ia embora?
-Você quer que eu vá?
-Mesmo longe ainda vou poder olhar pra você no céu, você não disse isso de nunca parar de brilhar, mas fica, tá escuro. Fica, aí quem sabe os morangos crescem, tadinhos, você gostava tanto deles. E eu mofei. Desculpa desculpa.
-Gosto mais de você do que dos morangos frescos.

"Abriu os dedos. Absolutamente calmo, absolutamente claro, absolutamente só enquanto considerava atento, observando os canteiros de cimento: será possível plantar morangos aqui? Ou se não aqui, procurar algum lugar em outro lugar? Frescos morangos vivos vermelhos. Achava que sim. Que sim. Sim" Caio Fernando Abreu, Morangos Mofados

sexta-feira, 8 de março de 2013

Epifania das linhas paralelas


Como se um gesto ou uma palavra pudessem mudar toda uma vida. E como se a vida fosse só um instante. Pois então era. A moça, debruçada na janela que dava para um vasto cenário em abstrato, sentiu uma súbita vontade de gritar. Mas era mais como um grito interno, a garganta fechada, a epifania daquela sensação chegava cada vez mais devagar, rondando o lugar, brotando das flores, varrendo o chão. Descolando, talvez, uma parte plural de todo um conjunto que logo corria pra se esvair dela. O grito se transformou em um riso perpétuo. Não irônico, nem obstante, talvez doentio, obscuro, familiar, sozinho ou indiferente, mas nunca a tristeza estampada nos lábios. Essa coisa não existe, da tristeza esboçando um sorriso, é sempre o sorriso esboçando uma tristeza. Mas nem era nada, era só desejo de trocar os discos de notas agudas por um de notas graves. Todos estavam enferrujados, mas aquela música parecia durar para sempre. Aquele riso incontrolável de quem nem sabe o que quer mesmo querendo tanto saber parecia durar uma eternidade, mesmo que o eterno dure só um segundo. O pra sempre é um grito que não chega a ser formado, um desespero no vácuo. A garganta fechada e o coração muito mais, como se um instante pudesse trazer a resposta, e a brisa morna fosse fechar as abas de um esboço muito mal-feito naquela tarde. Havia um outro esboço, alguém do outro lado daquele imenso corredor, como um rabisco, só se enxergava os contornos, nem luz tinha e não era tampouco uma sombra. Havia chegado depois de um instante, após uma vida inteira, e aquela interrogação pairava no ar enquanto vinha andando em sua direção aquela figura. Uma interrogação que deixava solta a mudança paralela ao fracasso e à felicidade, como duas linhas paralelas se encontrando no abismo do infinito. Por si só e por si mesmas.
-Vamos?
-Vamos.