sábado, 23 de fevereiro de 2013

Esse texto vai sumir


Hoje, olhando pela janela em mais um dia claro, me dou conta de que tudo vai sumir. Esse sol vai sumir, mas não o sol: o que vai desaparecer é o brilho que emana hoje, diferente de ontem e diferente dos raios de luz de amanhã.  Tudo virará pó, porque o que existe no hoje, aqui nele se perde. Eu também sumirei, porque amanhã nem eu sou mais o que hoje me parece: já terei ouvido novas palavras, visto coisas novas e sentido diferente. Amanhã sou outra, mesmo vestindo-me com as mesmas roupas. O outro dia não nos permite ser o que já fomos. A história pode possuir os mesmos roteiros, mas nunca os mesmos personagens. Nós nunca somos nós: somos vários que não somos amanhã. Somos vários que só vivem 24 horas. Como pássaros que chegam e vão. Eu vou sumir. Você também. Talvez um dia eu vire tu e tu me vires:  quem sabe do avesso, de cabeça pra baixo. Quem sabe por inteiro, talvez por metade. Tenho medo de piscar e perder um detalhe que nunca voltará atrás ou à frente,  medo de parar no tempo e para o tempo parar. Tudo some e reaparece, mas nunca permanece.  E estou assustada de perder um momento, como se a resposta pudesse escorregar de minha mão. Nada é real. Nessa manhã as coisas pairaram no ar como uma neblina espessa que mal deixa espaço pra se respirar. Isso também vai sumir. Os cheiros, as cores. Tudo é igual, mas nunca é. E está tão perto que quase posso tocar. Tão longe que quase posso fugir.


“Um homem nunca passa duas vezes pelo mesmo rio. Nunca é o mesmo rio. Nem o mesmo homem” Heráclito

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Todo carnaval tem seu fim



Estava escuro. A fumaça inebriada a impedia de ver algo naquela noite. Cambaleando em meio aos destroços do que parecia uma festa de rua, encontrou um lugar vazio no meio fio e se sentou. Os amigos tinham ido embora, talvez tivessem ido dar uma volta, e ela havia se perdido. Estava sozinha, mais uma vez então, em todos os sentidos que abarcam essa palavra. Solidão. Tão doce e tão cruel como um fim de tarde que vai esmagando a noite com os últimos raios de luz.
Era carnaval e ela não estava feliz. Pelo menos não se sentia assim. Aliás, fazia um bom tempo que não se sentia como nada. Não se sentia porque não sentia. Anestesiada e entorpecida, ela nem estava mais lá. Não se sentia parte de nada, não pertencia a lugar algum, e pela primeira vez em todo esse tempo, aquela garota de cabeça baixa no canto da rua percebeu que não fazia mais sentido querer desaparecer: ela já havia desaparecido. Como toda a fumaça na rua, ela estava em todo lugar, e ao mesmo tempo não estava. Desaparecia pelos ares no mesmo segundo em que era formada.
 Olhou para os lados e se perguntou se alguém poderia vê-la. Alguns pareciam estar olhando, mas o essencial é invisível aos olhos, e logo percebeu que eram todos cegos de alma. Ninguém poderia enxergá-la. Não naquela noite. Estava escuro demais. Seu celular tocava em algum de seus bolsos, mas nem se deu ao trabalho de ver quem era ou pegá-lo para atender.
 O estado de entorpecimento era tanto que a qualquer movimento ela poderia desmoronar e se tornar a poeira da rua. Cada gesto doía demais, mas doía porque não doía, e mesmo assim era necessária força para aquilo. E ela estava esgotada. Quis gritar, mas não se lembrava mais como. Não naquela noite.
Era difícil se focar em algo em meio a tanto barulho, que apesar de tudo, era melhor do que o silêncio. Talvez por isso estivesse ali. O silêncio era insuportável, e mesmo assim corria nas suas veias.
Tudo que conseguia pensar era em voltar para casa. Estava com fome, mal havia comido, havia dias que não se alimentava direito ou andava sóbria. Levantou-se. Mal conseguia respirar em meio à multidão. Os passos eram lentos e imprecisos. Alguém agarrou seu braço, e ao se virar para ver quem era, tinha sido agarrada por um estranho. Ela não conhecia aquele rosto, mas também não tinha força para se livrar daqueles enormes braços. Tais lábios desconhecidos pareciam queimar os seus com tamanha brutalidade, que tudo parecia pegar fogo. Ela estava ardendo em chamas. Quando finalmente foi solta, sentiu uma vontade inexplicável de vomitar. Começou a chorar. Sentiu-se suja da cabeça aos pés. Estava imunda. Mesmo se tomasse dez banhos, jamais seria capaz de se livrar daquela sujeira. Odeio eles, cuspiu. Odeio todos eles.
Ainda precisava caminhar até o ponto de ônibus, cada passo era uma eternidade. E naquela noite, a eternidade tinha um gosto podre.
Acendeu um cigarro e por um segundo teve a impressão de que alguém havia chamado seu nome, porém depois começou a rir consigo mesma. Ninguém podia sequer vê-la, como poderiam chamá-la? Mas o som prosseguia e ao sentir uma presença atrás dela naquele ponto de ônibus praticamente vazio, virou para trás.
Tudo que avistou foi um enorme sorriso e um par de olhos marejados de lágrimas. Não se recordava muito bem daquele rosto, talvez em sonhos antigos, mas aquele sorriso.Jamais poderia esquecê-lo. Ouviu a pessoa comentar:
-Você não parece feliz.
Quis perguntar se alguma vez já havia parecido, quis pronunciar o seu nome, mas não se lembrava. Quis dizer algo, mas não conseguiu. Então apenas olhou com carinho e deu um sorriso, mas quando se deu ao tempo de piscar, as sombras haviam envolvido aquela figura. Não havia ninguém lá. Ela estava sozinha. Ao subir para o ônibus, tudo ficou preto. Nada era real. Não naquela noite. Não mais.

Nota: pra você, Jú, espírito livre, que me faz sentir menos sozinha nesse mundo.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Aceito




Quase ninguém suporta uma pessoa que sente demais. Alguém que pensa muito, vá lá, é ótimo, quem não gosta de alguém com boas ideias e senso crítico? Mas quem aguenta uma pessoa que sente mais do que os outros? Durante toda a minha vida eu sofri com isso. Sinto demais, escrevo demais, transbordo demais, porque sempre fui intensa em tudo que faço, e normalmente as pessoas se assustam e vão embora. Irônico, mas durante toda a minha vida, muita gente se assustou com o tamanho do meu coração. E deve ser por isso que eu fui socando ele dentro do peito pra ver se eu me tornava uma pessoa melhor. Será que eu me tornei? Acho que não, mas eu tinha boas intenções a respeito disso. Eu realmente tinha. As pessoas têm medo do que sentem e ficam com muito mais medo quando encontram alguém que não o possui. Deve ter virado pecado sentir. É doença. Todos sentem quando já deu o tempo de gostar, e eu não, eu gosto pelo prazer de gostar de alguém. O tempo, o infeliz do tempo. Horas marcadas, datas marcadas, tempo certo pra isso e aquilo. Claro que é preciso antes conhecer alguém direito pra ter certeza do que se sente, mas o verdadeiro lance é que as pessoas se assustam quando alguém diz o que sente antes da “hora”. E começaram a achar que todo mundo que diz antes do estipulado tempo diz da boca pra fora. Não. Não mesmo. Eu sempre fui do coração pra fora. Só que as pessoas me ensinaram a ser do coração pra dentro. É preciso ter vergonha dos próprios sentimentos pra não ser ridicularizado nessa vida. Porque sentir demais é exagero. Quem sente demais é louco, já viu isso, amar demais, e ainda antes do tempo? Bobagem. O negócio é fingir. E vão todos por aí se fantasiando de pedras ambulantes porque sentir não vale a pena. Sentir virou coisa de gente corajosa. De gente ousada. E eu sofro por ser assim, porque por sentir demais, acabei pensando demais, e de tanto tentar diminuir meu coração eu aprendi a sentir menos. Mas sentir menos me faz ficar doendo mais, como se eu não tivesse a licença de sentir o que eu sinto, mas sentisse mesmo assim. E então eu fico me sentindo oca. Porque assim é aceitável. Sentir demais virou coisa de gente corajosa. E mesmo sentindo de menos eu continuo sentindo demais. Ninguém precisa me aceitar. Ah, meu Deus. Eu me aceito. Eu aceito ter nascido com um tipo de angústia inexplicável que me faz amar o mundo e odiá-lo ao mesmo tempo. Eu aceito. Quem disse que eu tenho medo? Eu me aceito.