quarta-feira, 19 de junho de 2013

Querido Demônio


Pelo fato de odiar escrever a nada, essa carta é para você.
Demônio enrustido, maquiado, camuflado, disfarçado, e principalmente, covarde. Essa é pra você. O eu que nunca quis ser.


Te dizer, meu amigo, meu fiel companheiro de todas as manhãs, tardes, noites, madrugadas, que não aguento mais essa cilada que você fez pra mim. E o nosso combinado, de que você podia viver desde que ninguém olhasse pra você, desde que ninguém te visse de verdade, desde que você se contentasse em aparecer sorrateiramente e subir aqui, nessa cama, a me esperar, todas as vezes que fecho os olhos? Fechar os olhos é a maior perda de tempo, existe uma parte de mim que continua acordada enquanto durmo e esse pedaço podre é você. E o nosso pacto, foi pra onde, será que você o engoliu também? Junto com todas essas migalhas de esperança, essas míseras lascas de compaixão que eu demorei tanto tempo pra catar por esse chão imundo e esfregar na sua cara, que dava, dava sim pra não morrer de fome, de falta, de pouco. Dava pra ficar de pé mesmo sendo pouco. Bem que diziam que essa coisa de fazer pacto com o demônio é meio perigosa, então tá aí, tô expondo pra todo mundo o pacto que a gente fez, e você vai fazer o que, vai fugir? Não, agora fica que você vai escutar. Há anos que quero te dizer, seu engraçadinho de merda, o que você fez comigo? Pra onde você me levou? Estou tentando descobrir até hoje. Você era tão pequeno e indefeso quando nos conhecemos, pensei que era preciso só  um pouco de cuidado. Amor, talvez, isso existe em você? Estou ficando mais louca do que imaginava, é claro que amor existe em você, se não fosse o amor que lhe dei deveras como você iria crescer? Me agradeça, seu filho da puta. Se levante e olhe pra mim com o que lhe resta de dignidade. Esperei anos para reunir coragem e lhe destinar essa carta, sempre tive medo de você transparecer nos meus olhos e me impedir de realizar meus sonhos. Quem eu sou, sim, mundo, eu sou uma medrosa que se armou com coragem de papel. Sinto muito decepcionar alguém, mas é alto demais o pódio em que me colocaram, eu não sirvo mais pra interpretar esse papel. Estou botando fogo nele. Aliás, eu decepcionei você, amorzinho? Você esperava mais de mim, será? Eu sou medrosa, mas no começo eu não tinha medo de você. Você era tão pequeno que eu mal sentia a aproximação. Eu tenho medo, mas você é covarde. Covarde. Covarde. Covarde. Como se sente sendo um parasita intracelular? Como suas fibras não queimam e não se torcem em gravetos e não me deixa em paz?  Já não basta a vergonha que passei. E quem é você, aqui nesse corpo, quem você é além de um protótipo. Quem você acha que é, pra assumir as rédeas dessa alma? Desgraçado, você precisa de mim pra viver. Você respira o mesmo ar que eu, se alimenta de tudo que me cerca e prefere absorver as belezas. Você sempre foi egoísta que eu sei.  E vai deixando esses restos de imundície por aqui como se eu não pudesse enxergar mais. Ouça bem, eu tenho dois olhos e eu estou olhando pra você nesse instante. Eu ainda posso te ver, espertinho. Pena que quando você ia embora eu te pedia pra ficar, não por vontade própria, mas como uma mãe que não suporta a ausência de um filho mesmo que ele seja uma pessoa horrível. Dê a cara à tapa agora, meu filho, não é isso que você sempre gostou de fazer? A mãe tá aqui, não chora não.  Lembra que você me ensinou que chorar é inútil porque a dor não passa? E mesmo quando eu chorei você me fez carinho. Sussurrando vai, afunda aí na merda, enquanto isso acenava pra mim. Esse é você. Esse sempre foi você. Um dissimulado. Sempre me fazendo acreditar que a culpa era minha, a falha era minha, você ria de mim dizendo: olha pra você mamãe, que fracasso de gente você se tornou. Demônio, querido, você já foi melhor que isso. Demorei uns anos pra conseguir perceber que você me matava aos poucos, e eu te jogava pra fora do berço,  mas você nunca conseguiu se virar sozinho que eu bem sei. E eu sempre me culpei porque não sabia mais viver sem você. Eu via beleza em você porque você absorvia beleza de todas as coisas. Você roubou a beleza e se transformou nela, anunciando o quão valioso era, se promovendo. E eu te comprei com o resto do que me sobrou. Sim e sim. Eu medrosa, você covarde. E sempre nós dois andando juntos. Até que viramos um só. Veja só, que tristeza, eu nunca mais consegui chorar sem a leveza do sentir. Era como se a alegria estivesse sempre recolhendo a mão pra mim e abrindo pra você. Você sempre levou o crédito das coisas, sempre ditou as regras, mas ninguém nunca suspeitou. Coitados, se soubessem da junção de nós jamais teriam dito o quanto eu era corajosa. Você quase me calou em muitos momentos. Mas quem continuava lá ainda era eu, mesmo que você estivesse lá também. Depois de um tempo tornou-se insuportável dividir o corpo com você e tentei a todo custo te expulsar. Nada funcionou. Malandro você, esperto, e principalmente, insistente. Viu que eu não estava feliz com a sua companhia e se escondeu bem lá no fundo, mas quando eu achava que não, você aparecia em noites escuras, sombrias, que nunca consegui definir se eram uma representação real de você ou de mim. Como queria varrer você. Se eu pudesse. Mas teria que varrer eu mesma, e finalmente consegui. Varri os dois e me senti completamente vazia. Um espaço em branco, zero à esquerda, na maioria dos dias eu nem existia. Ninguém podia me olhar. E você estendia os braços pra mim, volta mamãe, me abraça,  isso ainda é melhor do que o infinito dos dias incertos. Pelo menos eu sempre tive certeza de você. E você me arrastava e eu te arrastava comigo. Era sempre quando estava escuro. Nunca consegui me livrar de você. Mas hoje, depois de tanta coragem reunida, vim dizer que o covarde é você. E que eu não suporto mais essas duas mãos cravadas no pescoço, não aguento mais ter que dormir com os punhos e dentes cerrados com medo de você, suando frio, alucinando, viajando, pairando em nada, sobrevoando as minhas fortalezas de papel. Eu odeio acordar em um lugar diferente e não saber como fui parar lá, odeio não saber se estou dormindo, de fato, porque talvez você ainda esteja acordado. E você grita quando eu durmo também. É insuportável. Talvez seja por isso tantas olheiras e ossos depois de dormir horas e horas, talvez por isso as inúmeras dores de cabeça. Você grita demais. E só eu escuto. Deve ser por isso que ninguém acredita em mim. E dizem que estou ficando louca, eu queria ter alguém pra conversar sobre isso, então vim falar com você. Você acha que eu enlouqueci? Seja sincero. Eu nunca tive ódio de você, sempre achei você uma criatura inocente e indefesa que só precisava de amor. Mas você sugou todo o meu amor pra você. Eu estou com as mãos atadas e a impressão que tenho é que eu mesma me amarrei aqui. Só queria entender. Ninguém nunca entendeu você, não é mesmo? A falta de compreensão faz as pessoas cometerem loucuras. Talvez seja isso. Eu sempre te perdoei. Sempre me vi muito em você e na sua beleza meio triste, meio amarga, talvez, sombria, sempre teve um pouco de mim. A gente se misturou, porém você é solidão e eu liberdade. Amorzinho, tira essas correntes da mãe, vai, por favor, eu não aguento mais. Acordar assustada com todos esses hematomas e querer esconder pra ninguém olhar pra você. As pessoas acham você feio demais, vê se pode, sempre te achei tão bonito. Estamos aí, eu, você, minha visão distorcida e as  fortalezas de papel. Me liberta, vai? Me deixa respirar um pouquinho, tá tudo tão triste, lembra da promessa que você me fez um dia de nunca transparecer nos meus olhos? Qual foi, tá querendo ver o mundo, é? O mundo não gosta de você, o mundo não te entende, não te quer, é por isso que sempre te escondi pra que você pudesse ser amado por mim. Hoje não sei se é mais amor, acho que é um pouco de consideração que sobrou. Eu tenho vergonha de você. É isso, no final de tudo, não é ódio, mágoa. Nem amor. É vergonha, eu tenho tanta vergonha de você por ter se transformado em mim. E tenho tanta vergonha de mim por achar que era capaz de cuidar de você sem me amarrar em você. Eu sou uma prisioneira de guerra, mas me deixa sair dessa. Não digo nem vencer, deu empate, fechou? Mas me deixa respirar. Não tem espaço pra nós dois mais nesse corpo, ou você vai ou eu vou ter que me retirar. Se você não for nós dois morremos. É isso que você queria, meu filho? Transformar mamãe nesse papel de parede bege que as pessoas olham e não sabem pro que serve? Dá um tempo. Eu lhe imploro. Vá embora. Não vou contar pra ninguém os seus segredos, só que não existe mais espaço pra nós dois. Eu te entendo, demônio abusivo e cruel. Covarde. Eu te aceito. Mas uma mãe também precisa deixar os filhos irem. Se quiser voltar, a casa é sua, mas dessa vez as luzes estão bem acesas. Boa noite.

sábado, 8 de junho de 2013

Sobre o que nunca pude tocar

Ela era tão bonita que me senti quase constrangido ao lhe dirigir a palavra. Ela era como qualquer mulher, mas sua beleza não era óbvia: existia algo em seus olhos. Ela possuía um par de singelos olhos tristes cor de mel. Que clareavam ao sol pra me fazer lembrar do céu, e que ainda assim no escuro iluminavam meu rosto como fogo em brasa, pra me lembrar do fel. Parecia-se como todas, mas quando a olhei, senti mesmo foi pena de mim. Pobre de mim, coitado de mim. Além de tristes, seus olhos eram distantes. E um olhar distante significa mais do que as palavras podem dizer. Estava de cabeça baixa e quando perguntei qual era o seu nome, ela se ergueu e fixou os olhos em mim, e não posso negar, além de pena de mim, senti medo. Era a primeira vez que eu via alguém tão longe e perto ao mesmo tempo. Ela me enxergava mas jamais seria capaz de me olhar. Não estava ali, e naquela noite eu tive certeza de que aquele era o tipo de mulher que jamais estaria em lugar algum. Aliás, não tipo, porque nunca cheguei a conhecer alguém como ela. Não exatamente. E eram os pequenos detalhes que distinguiam ela do resto que faziam dela tão bonita. Depois que ela disse seu nome, me calei. Além de medo e piedade de mim mesmo, senti vergonha. De súbito e estranhamente, como uma luz queimada que resolve acender. Não me sentia no direito de falar com aquela mulher, havia algo em sua voz que me dizia que não se deve despertar a beleza que descansa em sono profundo. Tudo nela se encaixava, principalmente o sorriso e os olhos. Quando os olhos estavam distantes, existia uma fraca linha abaixo que expressava algum tipo de sentimento ou de palavra que eu nunca cheguei a decifrar. E quando os olhos tentavam focalizar alguma coisa a boca se calava, ou melhor, tornava-se inexpressiva. Porque mesmo sem dizer aquela moça me disse muitas coisas. É claro que eu quis conhecê-la melhor, mas era como um sussurro, um segredo. Eu não quis roubar a moça de uma coisa que nunca cheguei a descobrir. Não quis roubar o seu tempo porque naqueles segundos eu pensei que ninguém jamais tinha me presenteado com tão fantástica visão, e era um insulto continuar ali, desfrutando do olhar vago e fundo de uma moça perdida. Era abuso eu inclusive achar em um primeiro momento que ela fosse perdida, porque por mais que não estivesse ali, tive a impressão de que ela sabia exatamente onde estava. A mulher que quando despedi sem dizer meu nome sorriu me olhando (nunca o contrário). A mulher que me mostrou, naquela noite e em tantas outras que não a vi, que os amores passageiros têm febres fúteis. A mulher que eu tenho certeza que estava sempre se doando, mas nunca se mostrando pra ninguém. Que estava exposta e ao mesmo tempo tinha construído fortalezas dentro de si mesma. E eu me senti vencido por aquela alma. Não que perder possuísse grande significado, mas naquele instante me senti como sangue e nada mais. Aquele olhar e aquele nome jamais me saíram da cabeça, e depois daquele dia, procurei ela em todos os lugares, mas daí lembrei que ela nunca estava, de fato, em algum lugar. Mas estava sempre onde deveria estar. O nome dela? Seu nome era solidão.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

E eu nada






Hoje eu pensei que se
Que se a vida cair
Que se o vento me tirar daqui

Que se eu me enfiar nas árvores como um galho de luz
E não conseguir fugir

E eu nada
E eu tudo
E eu sempre mais do que devia ser

E eu aqui
E eu lá
E eu em nenhum lugar

Que se essa maré não virar
Eu não me soltar mais dessas correntes
E não conseguir voar


E eu como o vento nesse leva e traz
E eu que de tanto amar já nem sinto mais
E eu aqui

E eu nada
E eu que sequei como os lagos que derramam
As lágrimas dos peixes

E eu que sinto como as marés
Que recuam pra poder gritar

E girar e girar
E voltar
Como ombros pesados a aguardar

Uma canção
Um sonho bom
Qualquer coisa que seja assim

Muito menos do que dizer,
E que seja o vento
Que veio contra o cais

Que se abraçou à última vela
E sorriu de tanto não ser
E de não ser chorou pedindo perdão

E de tanto pedir perdão
Não agarrou nada nas mãos
E mesmo assim e mesmo assim

Conseguiu voar ainda mais alto
Mexendo em tudo
E abrindo gavetas e mais fundo

E eu que já nem sinto mais os teus sinais
E eu que de tanto amar chorei mais
Do que qualquer um

E eu aqui
E eu nada
E eu que queria secar como os peixes

Sem o sofrer
Desse eterno leva e traz
Desse eterno nunca mais

Pra sempre