sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Urgência

? ? ? ? ? - fleurdulys: Summer Meadow in Pobojka - Stanislav... | via Tumblr


Agora estou demolindo os fortes que outrora construí
com minha vastidão de suores, de sangue e de pedras,
que retirei com as próprias mãos dos meus rins.
Eu me doo toda para me proteger.

É incrível, é milenar, é bonito. Mas dói. Dor de demolir a dor
porque me demolir significa colocar as pedras de volta
com as próprias mãos minhas.
E abrir um buraco que há muito estava cicatrizado.

Agora estou com as pernas bambas tentando fugir do meu esconderijo.
Não como se um lobo estivesse à espreita para me comer,
mas de um jeito tal que eu esteja à espreita para comer o lobo.
Tenho medo. Não porque sou pequenina,
mas medo do que minhas próprias entranhas podem fazer.
Comigo e com o lobo.

Eu não tenho medo de morrer. Eu tenho medo de comer o lobo
e comer o forte e comer a minha própria dor.
De acabar comigo.
Eu não tenho medo de morrer; tenho medo de matar.

Matar o que construí com tanta vitória e tanto zelo e tanta
autocomiseração.
Medo não do mundo, que já me encarou trocentas vezes,
mas de mim, que dessa vez olharei o mundo de frente.

Medo de não ter medo e de abrir os braços em tamanha plenitude
que possa doer.
Porque é tamanho o barulho e as visões e o mundo
que meu coração baterá mais forte.

E as pedras sacudirão nas minhas vísceras como se eu nunca
as tivesse retirado de lá.
Sorrirei- sem piedade de mim.
E sem piedade do lobo que irei comer.

Mas com profunda e total piedade
do suor que deixei nos meus pilares de dor,
junto a uma outra pessoa que nunca achou que fosse existir alguma coisa a mais
para mim.

Sou o meu lobo. E me comerei.
Até porque meu maior medo não é da dor, a dor me facilitou a fuga.
O que me apavora é que terei de matar para viver.
Eu me matarei.

Com enxadas no forte, escavadeiras e um barulho insuportável: eu posso ouvir.
Com minhas duas mãos aplaudirei, e com meus joelhos dobrados estarei ajoelhada,
torcendo para Deus me perdoar.
Preciso viver.

E se para isso eu precise matar: mato.
Ressurgirei do outro lado.
É de uma determinação tão imensa o que agora sinto que quase dói.
De tão perto que está a luz.

E nem sei se a quero. Meu coração dói mas ao menos agora o ouço batendo.
A vida pulsa em mim, é assustador.
Há muito sangue em mim, sinto o cheiro.
De uma dor tão real que começo a me sentir até um pouco melhor com o que farei,

Porque antes a dor estava e eu não.
Agora matei o não-eu para eu e minha dor sermos duas.
Não sei se chego a uma alegria sem dor, meus estados de espírito insistem em me perturbar.
Para viver terei que matar. E depois não sei o que resta.

Agora é só uma sensação.
É de um jeito que nem estou aqui, mas as pedras continuam latejando
como se eu precisasse abrir os olhos. É uma necessidade.
Preciso matar, embora meus olhos se fechem involuntariamente.

Estou triste de uma tristeza profunda porque não sei matar apesar de querer.
Não conseguirei atravessar o forte. É alto demais, quase como chegar ao céu.
E fui eu que o construí.
Acho que o antes de mim sabia que eu precisaria fugir.

É de uma urgência.
E me abandonou aqui na minha solidão.

Não poderei matá-la: ela, meu outro-eu, minha antítese.
Ela já pulou, o que faço, como saio?
Não há ninguém para me dar a mão.
Eu e eu nos detestamos. Acho que terei que me retirar desta briga.

Dormirei. Talvez amanhã minha outra eu renasça aqui no cativeiro que construiu,
e nem imagine que amanhã também estarei. Ou talvez sim.
Ela é inerte porém esperta.
Não tem medo de morrer, mas morre sempre.

Eu nunca morro mas preciso matar.
Eu a devoro desejando morrer.
Necessitando viver.




quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Dentro

Untitled | via Tumblr


Em um dia de verão (não importam as estações, para mim sempre quando está um calor tão grande que nem dormir consigo, é verão). Bom, em uma noite de verão, estava eu deitada no assoalho de madeira da sala, desejando um pouco de frescor. Que não saía das janelas nem de dentro do meu peito, essa velha alma minha que já cansou dos seus constrangimentos. Só um bafo quente, uma estufa, atmosfera que faz o corpo inteiro grudar e eu nem me aguento de tão perto de mim que estou. E de mim não posso sair.
Mas, bem, eis que nessa noite quente estava eu olhando pela janela da sala e vejo um vulto preto. Não, não era espírito, era só- ou muito- a minha cachorrinha olhando fixamente para o portão de casa, esperando a minha irmã chegar para poder dormir em paz. Mesmo grudada no chão e não conseguindo pensar em nada além do fato de que essa quentura me deixa mais preguiçosa e inquieta, eu me deti naquela cena. E senti que O Deus, não o Deus que mora nas nuvens nos céus, mas o Deus do meu Mundo, tinha finalmente me mandado um pouco de frescor, de vitalidade e de juventude. Juventude e vida porque o amor é sempre jovem e sempre vivo, e fresco pois sempre esfria a alma quando o corpo recebe o inferno. E porque sempre, invariavelmente, até a sua morte, a minha cachorrinha ficaria ali, olhando pela janela até a minha irmã voltar. Porque mesmo fechando os olhinhos de tanto sono e de tanto calor, ela ainda espera, e o amor espera, nesses dias de verão e em qualquer outro, um pouco de ar fresco, vivo, ar em movimento.
Porque quando olhei nos olhos pretos e fundos desse serzinho, eu vi meu espírito refletido. Acredito, portanto, ou mesmo sem verossimilhança alguma, que o amor nada mais é do que uma junção de naturezas que se aguardam. A alma nada mais é do que a junção de naturezas distintas, todas postas em um corpo só, em um espírito que em toda a sua egocentricidade se divide. O Deus do meu Mundo nos fez tudo, mas nós nos dividimos para não ter medo de viver o Todo. E se o mundo é essa junção de almas e de naturezas, eu nem sentia mais medo nenhum. Nenhum medo de ser engolida pelo mundo porque ele me guarda. E se ele me guarda, eu não posso morrer porque o tal universo cheio das coisas viraria um universo sem mim, e, portanto, ele não pode me engolir porque já estou dentro dele. O máximo que poderia acontecer era ele me cuspir para fora, mas aí tanto faz porque ele perde um músculo, um fragmento minúsculo mas que poderia distorcê-lo. O mundo é um espírito Maior narcisista, que guarda vários outros espíritos narcisistas, e dentro desse mundo que conhecemos existe um submundo que se chama amor, e o amor  não é o engavetamento das almas como o mundo é, o amor é o aguardo de duas presenças. Quando duas naturezas se unem e festejam juntas o nascimento de uma outra repartição do mundo. É o amor esse aguardo na janela morrendo de sono num puta calor que tira o mundo do lugar. O mundo só se move porque as almas amantes saem do mundo e a ele retornam. O amor é a força movedora, Aristóteles, esse era o Motor Imóvel. Ou o calor finalmente me tirou as rédeas da sanidade mental.

Eu dormi no chão aquela noite, pensando nessas coisas. Quando acordei a minha irmã já tinha chegado, e as duas, ela e a minha cachorra, estavam dormindo. O mundo havia retornado aos seus eixos. E eu não me cansava de olhar.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

É de lágrima





Eu poderia apenas estar escrevendo uma crônica, mais uma qualquer, nesse véspera de feriado em que eu tive um tempinho para pensar. Poderia ser apenas eu, mais uma vez, entediada, mas não. Essas palavras são mais do que isso. Ontem eu ouvi de uma das pessoas mais especiais da minha vida o comportamento mais preconceituoso proveniente da representante da Instituição onde eu estudo. Minha amiga é, antes de tudo, maravilhosa, sorridente, atenciosa, carinhosa, inteligente, ética, respeitosa. Bela, enfim. Belíssima. Digo isso porque eu poderia começar dizendo que ela é homossexual, entretanto ela é muitas coisas antes de ser homossexual. Antes de ser homossexual, ela é a pessoa que sorri pra mim e a minha alma se abre. Antes de ser homossexual, ela tem um sorriso lindo. Antes de ser homossexual, ela tem um nome, uma casa, um cachorro. Antes de ser homossexual, ela tem um caderninho em que faz uns desenhos super legais. Antes de ser homossexual, ela faz os outros se divertirem com a sua presença. Antes de ser homossexual, ela tem uns cachinhos muito lindos, super legais. Assim como o fulaninho da esquina, que antes de ser heterossexual, é muitas coisas antes.
 Mais do que quem se ama, o importante não é saber amar? O importante não é ser educado com as pessoas, ser conveniente, deixar os outros em paz quando eles precisam de paz? Não? Então eu não entendo. Então eu não sei mesmo se eu vivo no Fantástico Mundo da Carolina ou se o mundo é tão horrível assim mesmo. Porque, no Fantástico Mundo da Carolina, o importante é saber amar, amar as pessoas, os bichos, as plantas, o ar, qualquer coisinha. Se eu beijo um macaco, uma menina, um menino ou um cavalo, o fundamental não é o fato de que eu não saio por aí ofendendo os outros, matando, estuprando? O fundamental não é aquela coisa boa que a gente sente antes de dormir porque tem alguém que nos ama? Você aí, heterossexual, irmã, freira, padre, papa, o que for, não acha que tem o direito de sentir o quentinho no coração porque tem alguém te dando a mão? Irmã, Deus não te dá a mão na hora que você vai dormir? Você não se sente feliz? Então por que a minha amiga que antes de ser homossexual é um ser humano maravilhoso não pode sentir uma coisa boa no peito porque alguém a ama? Por que o seu Deus não pode amá-la? Ela é diferente de você até que ponto? Que eu saiba os ossos são feitos de cálcio e o corpo é revestido de pele. Que eu saiba se enterram todos no cemitério, um ao lado do outro, homossexuais ao lado de heterossexuais ou ao lado de Irmãs, enfim, pessoas ao lado de pessoas. Não é assim? Então qual o problema? Qual é a dificuldade? Por que as pessoas, frente a minha indignação, vivem dizendo que “é assim mesmo, o preconceito, tudo vai ser sempre assim”? Por que é assim? Eu não concordo. No Fantástico Mundo da Carolina as pessoas tinham que ser mais felizes, que se amar mais, que desejar que todo mundo fosse amado.
Por que os outros se odeiam? Por que as pessoas passam mais tempo odiando umas às outras, buscando expulsá-las de escolas porque tem um cabelo verde, azul (e uns cachinhos lindos),  porque namoram com uma menina e a abraçam em frente à faixada de uma escola católica? Por que o Deus de vocês é assim? Por que Deus tem que ser machista, sexista, preconceituoso, igual vocês? Deus não deveria ser um exemplo a ser seguido? É por isso que o mundo é desse jeito, porque as pessoas ficam inventando Deus pra odiar todo tipo de gente, então isso dá o direito das pessoas se odiarem umas às outras. Não, não, não mesmo. Se existe Deus, a todos ele ama porque somos todos feitos de ossos que são feitos de cálcio. Por que eu tenho que me conformar que um simples andar de mãos dadas seja tamanho insulto? Por que eu tenho que aceitar que Deus é assim? Deus não é assim, que droga! O DEUS DO FANTÁSTICO MUNDO DA CAROLINA A TODOS AMA, E DEVERIA SER ASSIM, SE DEUS É “HUMANO”, ENTÃO QUE VOCÊS FAÇAM DELE UM REFLEXO BOM DA HUMANIDADE!
Porque a minha amiga, antes de ser homossexual, é minha amiga. E porque antes da minha sexualidade eu sou gente, ela é gente, nós temos desejos, paixões, tristezas, necessidades. Eu não aceito que ela seja tratada como o vírus HIV nos anos 80. É ela quem coloca um sorriso no meu rosto, por que será que eu deveria me conformar com o Papa, o que for, tirando um sorriso do rosto dela?
Não é justo. E você aí do outro lado dessa tela pode até pensar “a vida não é justa”. Não, não é, mas deveria ser. Quando eu era criança eu sonhava com um mundo onde sempre fosse Natal. Onde todo mundo se amasse igual no Natal. E eu fazia cartinhas pro papai Noel pedindo presentinhos, mas hoje eu queria pedir, papai Noel, dê um pouco mais de sabedoria e tolerância para as pessoas. E para a minha amiga e todas as pessoas que, por infortúnio, diariamente são ofendidas, espancadas, humilhadas, um pouco de paz. Eu não sou mais criança mas eu ainda sonho com um mundo em que todo mundo se ame igual no Natal, todos os dias.
Essa escola não me representa,  assim como tantas outras coisas não me representam. Irmã, pessoas conservadoras ou o que seja lá que vocês forem, eu espero, do fundo do meu coração, que o Deus de vocês deixe de existir, porque Ele entristece as pessoas.
O Deus do Fantástico Mundo da Carolina a todos ama. A todos respeita e de todos cuida.
O meu Deus te ama, Kai. E ele quer ver você rindo a toa.