sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Vela acesa

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Era como uma vela acesa
No escuro
E eu queimava em brasas
E eu ardia em chamas

Era apenas uma vela
Que seguia iluminando túneis
E poços e esgotos e almas
Calmas

Vela acesa lúgubre
Dos que rezam malditos
A cópia de um ilustre amor
Fúnebre

Era uma vela acesa
E eu que sempre tive medo
De riscar os fósforos
Respirei fundo e fui-me

Queimei mais do que as duas mãos
Trêmulas
Mas fui-me: a toda parte
Ingênua

Eu ardia em chamas
E achava lindo
O fogo se alastrando
Tomando conta de tudo

E o mundo em silêncio
Eu achava lindo
Só uma vela acesa
A minha voz, presa

Até que bateu um vento
E enfim: o fogo tremeu nas bases
Um rastro de luz teimava ficar
Mas a luz da vela apagou-se

E eu que nem tinha mais fósforos
Nem dedos pra queimar
E eu que perdi o medo
E deixei de achar linda

A coisa mais linda do mundo
E eu que queimava em brasas
Vi a luz da vela se apagar
E o que disse? Nada!

Foi-se, como quase tudo
E eu nem me lembrava da sua existência
Fraca, insípida, e rápida
Mas que, enquanto pôde, iluminou mares e morros
Mesmo que minha, não fosse

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

As coisas difíceis de dizer



A primavera chegou. Com ela todos os cheiros de todas as flores do  mundo. As pétalas e as folhas voam em direção ao vidro do carro. Está tudo bem. Aquela moça de 18 anos, Cecília, de cabelos ruivos e peito aberto, tinha muitas coisas pra resolver naquela sexta-feira. Mas estava tudo bem. Pelo menos enquanto o vento soprava e ela tinha aqueles preciosos momentos de paz quando se estaciona o carro sob o cascalho e o barulho tem um gosto de casa. Cecília nunca se sentiu em casa de verdade. Só uma vez, mas não entremos em detalhe. Arrumou-se sem muito cuidado, não estava indo para um encontro, não exatamente, sua intenção não era impressionar alguém. Sonhava em se esconder, mas não pretendia ver alguém com um aspecto de alguém que não dormia há anos. A verdade é que dormia tempo demais. Tempo vago? Talvez. Mas isso não era o mais importante. O mais importante são os detalhes, talvez por isso Cecília tenha optado por um perfume mais fraco do que por um mais forte. Ah, os detalhes. Antes de sair, se certificou de que tinha fechado todas as portas. Não era medo de ladrões, o medo real era de invadirem o seu íntimo, como já havia acontecido uma vez. Uma vez que pareciam tantas porque tantas não teriam doído como uma só. Há umas semanas bateram na sua casa pra perguntar se tinha alguém e ela já tinha ido. Pra longe. Pra onde for. Pra onde forem as flores.
No caminho, começou a pensar sobre como, para ela, o amor era a única coisa que importava na vida. Ela não tinha perdido a fé no amor, tinha perdido a fé nas pessoas. E enquanto suspirava com mais ar do que realmente existia em seus pulmões, percebeu que estava muito cansada. Muito cansada nem rompia com tal limite em que um ser humano podia chegar. Estava exausta. Teria chorado se por acaso se lembrasse como. Quando olhou pro céu, esperando encontrar por ali uma resposta que nunca tinha encontrado, o tempo fechou, começou a ventar muito forte, as flores, que antes pareciam vivas e cintilantes, tinham tomado o estranho aspecto de mortas. Começou a chover. Estava a pé e já muito longe de casa para voltar e pegar um guarda-chuva. Preferia chegar encharcada do que ter que regressar. Na verdade, sempre foi assim, os riscos faziam o seu coração bater mais forte. Além do mais, seu destino eram apenas mais 5 quarteirões à frente. Ela não iria voltar pra casa, não com aquele sinal dos céus. Voltar pra casa era como seguir em frente sem ter resolvido o passado. O amor era exatamente como a chuva. Lindo, mas poucos se arriscam a sair de casa e ficar molhados. Há os que usam as famosas capas de chuva. Ela nunca gostou de se esconder. Que a vissem assim, encharcada até a alma mesmo. Chovia demais. O amor é assim, de uma hora pra outra, de uma chuvinha fina, pra um pé d’água. Começou a chorar. Sem problemas, ela não ia voltar. Estava feia, com o cabelo bagunçado, rímel escorrendo. Como se isso importasse perto de um coração cheio de venenos e de remendos. Se sentiu suja como se tivesse levado um banho de esgoto e não de chuva. Porque queria, pela primeira vez na vida, ser vista como era. As pessoas colocam máscaras no seu rosto onde só existia transparência. Era a menina mais diáfana do mundo. Longe de ser a mais linda, mas era a mais real. Escorrendo, para na frente de uma casa marrom triste. Tão triste quanto ela estava. Toca a campainha, trêmula, morrendo de frio, e pergunta se ele pode conversar. Um segundo, ele diz. Quantos segundos um segundo apenas pode possuir. O tempo era tão triste quanto aquela casa marrom.
-Cecília! Meu deus! Entra, por favor, você vai ficar doente –diz Lucas
-Lucas, eu já estou doente, e não quero entrar nunca mais. Só preciso de 3 minutos, ok?
-Não consigo te ouvir com esse barulho da chuva!
-ENTÃO EU VOU GRITAR!
-Agora sim. Você sempre foi escandolosa mesmo. Estou acostumado –ele diz por entre a água da chuva, e Cecília teria tempo de notar o famoso sorriso triste se não estivesse tão desesperada para dizer aquilo que a estava cortando em pedaços. Triste. Triste. Triste. Triste. Essa palavra não é mesmo triste?
-Eu queria muito, Lucas. Eu queria muito não ter tido que voltar. Eu queria nunca ter ido embora, não ter mudado de cidade, não ter aceitado aquela maldita proposta. E eu sinto muito nunca ter conseguido te dizer adeus, mas você mesmo me disse uma vez, existem coisas difíceis de dizer,  como na casa da minha mãe, “não quero mais comer” ou “eu não amo mais você”. Mas sabe Lucas, qual foi a coisa mais difícil de dizer?
-O que, minha ruiva?
-A coisa mais difícil, e a que eu vim aqui pra dizer, é que eu te agradeço. Pelos dias mais felizes da minha vida. E te odeio por não ter lutado por mim, mas quem sou eu, que nunca lutei por você também? E sinto muito nunca ter dito adeus. Você merecia isso. Nós merecíamos isso. Eu te amo, eu só não gosto mais de você. Por esse rosto triste que eu vejo em você que é o mesmo rosto triste que eu guardei em mim.
-Cecília, cada gota de chuva caindo é uma palavra que tentei te dizer. Eu estava paralisado pela dor de ver você partir. Talvez por isso não tenha conseguido lutar. Você bem sabe que eu nunca fui muito corajoso. Eu sinto muito, ruiva. Sinto por tudo, eu também queria ter tido a chance de te dizer isso e...
Lucas começou a chorar. O que mais doía em Cecília, mais do que qualquer coisa no mundo, era vê-lo chorar. Tinha presenciado aquela cena tantas vezes e em cada uma delas parecia doer mais, então o abraçou. Molhados, tremendo, com medo, tristes. Lucas teve certeza, naquele momento, que aquela mulher era um furacão e ele era só uma chuva fina, mas por algum motivo louco ele sempre gostou de se molhar.
´-Adeus, Lucas.
-“Eu não quero mais comer” era mais fácil do que isso, Ceci.
-O quê?
-Adeus, ruiva.
As flores no caminho de volta pareciam vivas mesmo tristes. Ela estava seguindo pra trás, no caso, pra frente, sem nunca ter partido de verdade. E já que os detalhes são importantes: a única vez que tinha se sentido em casa era no caminho entre as duas casas. A casa marrom triste, as flores tristes, e mesmo assim, tudo mais bonito do que jamais um dia poderia ser. Era primavera.

“Quem sou eu para falar de amor, se o amor me consumiu até a espinha...”