sexta-feira, 18 de abril de 2014

Morfina

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A solidão não deixa rastros. Não possui o dom do perdão e não é perdoada por ninguém. É a visita insistente que faz com que coloquemos veneno em seu chá pra que bata as botas. Mas ah, não tem dessa com a solidão. Ela se nutre do pior que temos a oferecer.  Como as baratas. Suga o veneno, bebe o chá, pede mais uma xícara, e começa a visitar-nos com mais frequência. Senta-se, ou melhor, apossa-se da cadeira mais linda da nossa casa. E os dias passam. Ela torna-se a mais nova inquilina. E não há nada que possamos fazer, pois desistimos de enterrá-la a força. A solidão toma afeição por nós quando aparecemos para ela com paus e pedras, tentando vencê-la, ou quando nos calamos. Vil, mas cheia de boas intenções, diverte-se sadicamente com o nosso destempero. Com o tempo outros convidados chegam, mas a vontade de atender terceiros é nula, afinal, a solidão engorda, vira uma mulher obesa. Quebra as cadeiras. As pessoas não têm onde se sentar,  e a vergonha assola todo o lugar, como uma poeira estranha. Porque não importa a relação que tentemos estabelecer, a sensação é de distância. Ninguém nos toca porque a mulher gorda está parada na nossa frente. Possessa e possessiva, ela não vai a lugar algum. Tudo bem. Não faz diferença. Você também não vai a lugar algum. E com o tempo deixamos a sinceridade conosco e para com o mundo de lado, porque o universo e você estão separados por uma imensa parede de ferro. E no momento se está tomando chá com a velha gorda amiga quebrando as cadeiras e deixando-nos surdos e cegos e mudos. Tudo se envolve em uma densa neblina. A vida fica meio engraçada, pois ninguém te descobre. As pessoas só escutam o que querem ouvir. E é exatamente isso que se diz. E se diz sem ter certeza de que as palavras chegaram. Não há som. A densa neblina transforma-se em um aconchegante cobertor quando está frio. E a vida fica mais calma. Nada se teme, porque a mulher gorda protege a casa com unhas e dentes.  Só que um dia ela fica grande demais e vai embora. Mas a névoa fica. É tudo que fica. Nem o medo nem a coragem, nem o amor nem o ódio. Apenas a solidão e a morfina e isso é tudo.

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