quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Quando a dor já não dói




Olho para cima, para o céu denso infinito e escuro como um piscar de olhos e tudo o que consigo ver é a lua minguante, verticalmente bem acima de minha cabeça.  Ao me inclinar um pouco, a copa do telhado me indica um enorme buraco em forma de coração. Não, não é ilusão, é realmente um coração. Não faz frio, tampouco está quente. É uma típica noite de verão e eu só digo isso porque todo mundo fala do tempo quando na verdade o tempo nem existe e é tudo ilusão essa coisa de que o tempo todo, o mundo todo girando em torno do tempo. As luzes dessa noite chegam aos meus olhos um pouco turvas e refletidas por causa do incômodo da lente que apesar de tudo me faz enxergar. É importante conseguir enxergar mesmo que doa. Como ver uma dolorosa morte nos pequenos detalhes. Ou mesmo os detalhes bonitos: não se enxerga as folhas de uma árvore uma por uma, individualmente sem doer um pouco, porque sempre dói pregar a atenção no que é bonito. Pelo menos pra mim, porque eu esqueço até de piscar e aí fica tudo embaçado mas não deixa de ser bonito e individual e único e indiferente de mim assim mesmo. Tudo continua igual, mas eu sinto como se estivesse diferente. Como se os arrepios que eu sinto quando um vento sopra fossem mais agudos, ou menos tortuosos e torturantes, como se eu gostasse de doer só pra não ficar doendo. Como se eu deixasse de sentir dor quando soubesse que ela está lá. Porque o que dói mesmo é não doer, é não sentir nada.  O vazio me preenche de tantas formas possíveis e impossíveis que ele vai me engolindo e vai abrindo-se um buraco pro infinito e de repente o buraco sou eu e o infinito também. E é por isso que dói tanto, porque não dói. Simplesmente porque odeio ver um monte de cores e sequer conseguir distingui-las, me faz mal e me deixa doente escutar tantas vozes e mesmo assim elas não fazerem sentido algum, como se fosse um sussurro em outra língua e eu sorrindo com o doce gosto de um adeus que sempre volta. Eu não sinto dor quando a dor chega mansa e calma como uma brisa porque ao menos eu tenho controle sobre isso. Eu sei domar a minha dor, porque a minha dor não sou eu. Existe a dor e existo eu. Mesmo que quando a dor exista eu não me torne assim tão visível por ela nem por ninguém. Mas acontece que quando chega o vazio, o vazio não existe por si só, o vazio sou eu, e aí eu não sei voltar pra mim e eu não sei o que é isso que me perturba tanto e eu odeio não saber porque aí parece que eu vou adormecer sem saber nada e de repente tudo pegando fogo, e ardendo em chamas que não há água que apague. E a dor volta como uma velha amiga e eu gosto dela porque pelo menos ela tem forma, pelo menos consigo vê-la sem me cegar, assim como consigo ver as folhas das árvores e distingui-las uma a uma, mesmo que doa um pouco, porque ainda assim é melhor do que não ver a dor e por isso doer tanto, porque quando eu não vejo eu não sei o que é e todos estão rindo ou chorando e estou ardendo ou coexistindo ou amando  e eu ainda não sei o que é, ainda não consigo ver, não sei do que falam. Eu gosto de te ver assim, ao longe, ou perto, mas gosto de te ver nítido, gosto de saber o que eu sinto mesmo que eu não esteja gostando de sentir, gosto de te ver bonito, gosto das suas mentiras ou das suas verdades desde que elas sejam algo. Gosto de ver você tomando forma na minha frente e voltando tão vivo como uma chama pra minha vida e gosto que o amor reacenda mesmo que de fato eu nunca tenha conseguido apaga-lo, porque mesmo que doa o queimar das minhas veias e mesmo que eu comece a cuspir fogo e implorar por um socorro que nunca vem, e eu nunca sei chamar nem sei a quem nem como e nem quando, ainda assim eu consigo vê-lo. O amor, você, o cheiro, o toque, as suas loucuras tão suas, a sinceridade que esconde algum segredo, as mentiras, a paixão, qualquer coisa. Assim mesmo, qualquer coisa, eu vejo qualquer coisa cheia das coisas que são você que sou eu também. Mesmo que doa e me sugue e me transforme, ainda assim eu consigo ver. E eu não preciso clamar socorro porque você vem quente como uma tempestade e eu consigo te ouvir se aproximando, e eu gosto que você me domina por completo e ainda assim eu vejo tudo, muito melhor do que quando você vai embora e eu fico me tornando o vazio que eu sou mais uma vez, sem sentidos, direção ou noção alguma do que está na minha frente ou do que está acontecendo porque na verdade o que está acontecendo sou eu, e eu não gosto quando sou eu que aconteço o tempo todo como se não acontecesse nada. Não acontece nada. Não, eu não preciso pedir socorro, hoje mesmo eu até tentei gritar, eu saí correndo pra longe daquela outra pessoa parada na minha frente e eu não conseguia vê-la de repente porque é só você em mim no vento em todos os lugares, e eu te vejo assim tão nítido como a dor e quero bater e cuspir fogo no menino ao meu lado, eu quero cuspir você nele porque ele não é você e eu não consigo vê-lo e é por isso que ele é tão feio e daí vem a repulsa, o nojo e o ódio. Nojo de mim porque estou tentando pedir socorro de novo. Vergonha de mim e dos meus tropeços, do modo como sempre vou perdendo o sapato no meio do caminho e de que eu tento gritar e não sai nada, não sai nada, ninguém olha pra mim, ninguém me vê, ninguém ouve. Olha cara, não dá, eu digo pra ele. Não dá por quê? Porque não, porque não, quase grito sem voz alguma, você é só um formato embaçado que faz parte do vazio e o vazio não vai me sugar e eu não consigo ver você e vai embora agora, aí eu saio correndo e não encontro lugar algum ou pessoa que possa me salvar da minha espiral de paranoias, porque eu te amo eu te amo eu te amo ainda e por mais um dia e última noite última lua última estrela última flor última nuvem, eu te amo como se fosse a última e sempre a primeira coisa que eu fosse capaz de fazer. O seu fogo atinge em mim lugares que nem chama de verdade atinge, porque você é muito mais de verdade do que todas essas coisas que nem existem e que eu nem consigo ver direito. Você me queima por completo e eu sinto dor mas eu consigo ver o vermelho em volta e o laranja também e é muito mais quente do que essa noite meio fria, meio quente, porque sei lá, ficar sem se queimar é muito mais doloroso do que o calor do seu fogo. Faz tempo, faz tempo que eu não sinto os seus braços, me abraça, quero te tirar do vazio, quero te tirar do vazio que é não sentir dor e mesmo assim sentir tanta,  quero tirar você daí, quero te tirar da sua espiral de paranoias, vem morar na minha, quero te tirar do perigo que é achar que não tem perigo nenhum. Eu te amo eu te amo. Vou correndo, gritando e soltando fogo pelos meus pés e tropeçando e. Não há necessidade de implorar por socorro, acho que dessa vez eu não quero mesmo ser salva por ninguém sem ser você. Vem,  me queima. E me salva da dor de não sentir nada. De novo e de novo e sempre como nunca jamais e por tanto tempo mesmo que o tempo não exista o tempo todo.


"você pode ter todos os defeitos do mundo, mas ainda é melhor do que o resto do mundo"

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