sábado, 31 de maio de 2014

Where the heart wanders

u-vula - vverlassen: efedra: Chapel of the Fool (Cover... | via Tumblr


Suspira o vulto do vento
E suas volúpias voláteis levianas
Contra as bocas rachadas e santas
Murchas dos homens desumanos

Voa o vento veloz vivo
Parindo do peito um pássaro de polida luz
Cujos espectros externos cheios de aspectos sombrios
Velejam cansados e tortos às duras penas e portas
Entreabertas e profanas do meu coração

Mira-me um vizinho tom de vinho mágico
Adormecendo as pontas finas dos meus dedos e
Rezando-me um beijo doce e cálido de sangue no
Vasto vulgor eterno do céu

Racham os lábios pálidos dos homens desumanos
E num frescor feroz de fúria
Escorre o mundo diluindo devagar os crânios
Restantes do fogo e um ardor manso, de nada

É a morte, meu amor, e a morte
Tem cheiro de vida
A nos sobressaltar como um cálice de vinho
Esvoaçando as nossas cabeças ao som
Da música celestial

Assim como o vento me sopra
E de nada me entristecem os vultos
Que me contam uma breve e harmônica
História de amor
É a morte, meu bem, e a morte
Tem cheiro de vida.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Morfina

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A solidão não deixa rastros. Não possui o dom do perdão e não é perdoada por ninguém. É a visita insistente que faz com que coloquemos veneno em seu chá pra que bata as botas. Mas ah, não tem dessa com a solidão. Ela se nutre do pior que temos a oferecer.  Como as baratas. Suga o veneno, bebe o chá, pede mais uma xícara, e começa a visitar-nos com mais frequência. Senta-se, ou melhor, apossa-se da cadeira mais linda da nossa casa. E os dias passam. Ela torna-se a mais nova inquilina. E não há nada que possamos fazer, pois desistimos de enterrá-la a força. A solidão toma afeição por nós quando aparecemos para ela com paus e pedras, tentando vencê-la, ou quando nos calamos. Vil, mas cheia de boas intenções, diverte-se sadicamente com o nosso destempero. Com o tempo outros convidados chegam, mas a vontade de atender terceiros é nula, afinal, a solidão engorda, vira uma mulher obesa. Quebra as cadeiras. As pessoas não têm onde se sentar,  e a vergonha assola todo o lugar, como uma poeira estranha. Porque não importa a relação que tentemos estabelecer, a sensação é de distância. Ninguém nos toca porque a mulher gorda está parada na nossa frente. Possessa e possessiva, ela não vai a lugar algum. Tudo bem. Não faz diferença. Você também não vai a lugar algum. E com o tempo deixamos a sinceridade conosco e para com o mundo de lado, porque o universo e você estão separados por uma imensa parede de ferro. E no momento se está tomando chá com a velha gorda amiga quebrando as cadeiras e deixando-nos surdos e cegos e mudos. Tudo se envolve em uma densa neblina. A vida fica meio engraçada, pois ninguém te descobre. As pessoas só escutam o que querem ouvir. E é exatamente isso que se diz. E se diz sem ter certeza de que as palavras chegaram. Não há som. A densa neblina transforma-se em um aconchegante cobertor quando está frio. E a vida fica mais calma. Nada se teme, porque a mulher gorda protege a casa com unhas e dentes.  Só que um dia ela fica grande demais e vai embora. Mas a névoa fica. É tudo que fica. Nem o medo nem a coragem, nem o amor nem o ódio. Apenas a solidão e a morfina e isso é tudo.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Eu nunca vou voar

i hope you're happy | via Tumblr


As pessoas não são pessoas e eu nunca vou voar. Os pássaros olham-me, de uns tempos pra cá, com um certo ar de deboche. Se eu não posso voar, por que tenho olhos para ver o céu? Olho o céu e não posso voar. Absolutamente triste, eu fico. Como se além de não ter asas eu também não tivesse pés pra pisar no chão. A gravidade é demais pra mim. Sou aleijada na alma e por isso me falta o toque simples de quem pisa no chão com a delicadeza do ser, mesmo sabendo que não pode voar. Quem criou as regras desse jogo? Eu não quero mais brincar, não concordo, não quero mais saber. Perdi faz tempo, rio com as pessoas, mas nunca entendo a graça. Faz-me bem a incompreensão da alegria rasteira e geral, faz-me tão bem quanto uma navalha escavando o pescoço. Se existe uma parte podre minha que nem o vento nem o tempo nem o melhor dos sorrisos e das intenções pode me tirar, então por que não posso voar? Devo conviver o resto de minha vida com uma angústia que não consigo distribuir? Que me faz ter medo das pessoas que não são pessoas, dos pés delas que tocam o chão, das suas cabeças e do horror das suas palavras. Devo viver o resto da vida com horror da vida, com horror das pessoas que se aproximam demais e me olham com olhos sombrios? Devo viver uma eternidade sem conseguir me comunicar com o mundo? Como viver sempre retraindo e sufocando, respirando rápido demais pra não perder o ar, correndo dos lugares cheios? Se meus pés mal tocam o chão, como posso ir em busca do que é bom, se nem o bom é bom o suficiente para livrar-me do tão ruim. Se as pessoas não são pessoas e estão sempre comprando novos carros e novos apartamentos e novas vidas e dizendo que subiram na vida. Eu não quero subir na vida. Eu não quero que ninguém preste atenção em mim. E acordam pisando em solo infértil, e dormem como se não pudessem morrer. E temem a morte como se a vida não fosse assustadora. Porque não olham com atenção, porque não sabem quem são, porque não pensam antes de dizer, porque matam, porque torturam, porque negligenciam, porque ignoram. As pessoas não são as pessoas e eu tento fugir delas, mas sempre me encontram. Elas são como a gravidade e me tiram o sangue do rosto. Eu tenho medo de ser uma pessoa. Deus me livre, Deus me explique, por que eu não posso voar? Assim eu me livraria dessa gente que brota do chão como erva daninha, gente que se molda sem se construir. Eu não teria medo dos rostos feios deles e das suas verborragias medonhas. Deus que me livre de ser uma pessoa. Eu preferiria ser um rato, é mais digno, menos pobre, menos imundo, pelo menos eu não teria que brincar desse jogo infernal. Até morrer seria mais descente. Mas se eu tenho a forma de um ser humano eu provavelmente tenho a obrigação de ser feliz. Por que? Enquanto isso há uns anos atrás a Segunda Guerra Mundial e a Ditadura Militar, por que mesmo eu tenho que ser feliz se eu tenho medo dos seres humanos e em todo lugar eles estão? Todos eles me empurrando motivos e piadas e eu quero cuspi-los, quero vomitá-los com todas as minhas tripas e com todo o meu sangue que a humanidade tirou, junto com meu coração, inteiro e de uma vez só. Eu quero vomitar. Eu tenho horror em viver. Não tenho asas nem pés, então Deus, por que não me fez outra coisa? Por que eu tenho que viver em um corpo que não é meu? Por que tenho que sofrer o desgaste do mundo enquanto todos sorriem nas calçadas? Eu gostaria muito de me reduzir a nada, tem remédio pra isso? Eu cansei de me ser porque esse é o único mundo que eu consigo ver e não posso mudá-lo porque eu não me sou outra coisa. Cansei de me ser se ninguém é capaz de me amar porque a minha tristeza vai diminuindo-me a apenas uma luz opaca e ninguém consegue mais me abraçar, pois a falta de vida toma conta do meu corpo. Se não posso voar e também não tenho pés, ao menos espero que não exista vida após a morte, pois a morte tornou-se a vida. Não volto a esse mundo nunca mais. Nem se fosse pra voar. Nem voltando como o mais belo dos pássaros. As pessoas na Terra continuariam olhando pra mim e eu sinto um pavor tão grande que vou dormir.

sábado, 15 de março de 2014

Memória

mermaid hair | via Tumblr


Meu amor, escrevo-lhe à luz da lua, em meio ao inferno que este mundo está se tornando. Olho para  frente, para trás e para os lados e as dunas que vejo parecem-me mais como vendavais desfeitos por uma força maior. Das muitas coisas ao meu entorno, poucas tocam o meu coração, acendem-me as pupilas, fazem o meu sangue correr. De nada me vale esta lua se carrego de ti apenas uma foto manchada e uma lembrança nítida de tuas maçãs do rosto. Querida, estaria triste se ainda houvesse em meu coração qualquer coisa além do desejo absurdo de lembrar de ti a cada milésimo de segundo, para que assim, eu não te esqueças jamais. Eu sinto saudades. Os olhos da memória me falham, talvez eu te veja mais bonita agora. Já não enxergo tuas veias saltando dos braços ou teus olhos fundos de dor.  Já não encontro  mais nas dunas as tuas rugas na testa. Tudo que me resta é uma foto tua, quase tua. E ainda sou teu, foi tudo que me restou: esta certeza. Enquanto não vejo tuas mãos delicadas e teus cabeços bagunçados, eu te imagino, te pressinto, pois o tempo passou, você deve estar diferente na minha memória também. Te reinvento todos os dias para que eu nunca me esqueça. E principalmente para que nunca esqueças, meu amor, você ainda é tudo que eu tenho.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Carta


Untitled

Querido,
venha me salvar. As lâmpadas não acendem mais. Acho que cortaram a luz. São muitas contas a pagar- não que me falte dinheiro, falta força de vontade. Ou. Não sei.  Aquele algo que você dizia fazer o corpo funcionar. Eu perdi, você achou? Você costumava achar qualquer coisa pra mim. Perdi coisas mais importantes do que sapatos ou as chaves, devo confessar. Nunca mais fiquei ansiosa pra fechar as portas do apartamento, com medo, você lembra? Nunca mais depois que você foi embora. Se você me visse agora, arrastando os pés por esse apartamento porque dói demais pisar no chão, será que você me explicaria o que houve? Ou o que não houve? Durmo de portas e janelas abertas na esperança de você vir brigar comigo falando mais uma vez que eu sou desapegada da vida. Precisava ver agora. Mas não entrou ninguém aqui, uma pena, nem você. Passo a maior parte do dia dormindo de olhos abertos, às vezes eu queria que alguém chegasse gritando, socando as paredes, chutando os móveis, qualquer coisa pra eu despertar. Virei um fantasma de você, querido, onde estão as respostas?  Você me deixou sem nada. Todas as manhãs quando acordo, me pergunto se você ainda toma seu café forte, ou se por um milagre aprendeu a gostar de leite. Nunca entendi. Às vezes eu preferia que você tivesse morrido. Por que teve que ser eu? As pessoas dizem que você não gostava de mim. É verdade? Porque as portas do armário continuam abertas sem nada dentro do jeito que você deixou. Acho que a minha mãe varreu a casa, eu lembro de estar tudo sempre tão imundo aqui. Passei seis meses dizendo pra minha mãe e pro porteiro que você tinha ido em busca do motivo que eu disse pra você que queria encontrar, eu tive certeza de que você tinha ido achar pra mim, por uns seis meses ou seis anos eu tive certeza.  Não consegui abandonar a casa, você parou a nossa vida ao meio e eu fiquei buscando pistas nesse cubículo. Nem um bilhete você deixou. Eu deveria te odiar, mas nem isso você me permitiu. Fiquei tentando encontrar o motivo que você não trouxe. Cortaram a luz, querido, mas minha mãe vai pagar a conta pra mim. Ela sabe de tudo e eu desaprendi tudo. Acho que daqui uma semana vou embora. Cheguei a arrumar minhas coisas outro dia, mas não achei a sandália que você me deu de aniversário e perdi a coragem. Não me movo daqui sem achá-las. As pessoas não entendem. Elas acham que você não gostava de mim. Vou embora porque nem eu sei. Preciso encontrar tudo que você levou de mim. Muito mais importantes que as sandálias ou as chaves. Eu preciso do motivo, querido, e agora finalmente sei que não posso mais contar com você.

sábado, 8 de março de 2014

A salvo

Loving ✿ | via Tumblr


As vozes as cores os cheiros
Nada existe pra mim
As xícaras os livros as colchas
Nada existe pra mim

Os vultos as pessoas as nuvens
Tudo passa por mim
As letras as frases os gritos
Jamais saem de mim

A vida essa coisa estranha
Vida eu sinto muito
Mas você também não existe pra mim

O que sobra são
Pratos copos prateleiras
Que também não existem pra mim

E toco tudo e cheiro tudo
E os vultos vão passando e se curando
Se curando se passando
Dessa triste solidão que é a vida

Os garfos as facas nuances entrelinhas
Nada fala por mim
A vida essa triste eterna solidão

Das coisas por elas mesmas
E tudo sozinho e tudo apodrecendo
E duas mãos entrelaçadas e muito
Dióxido de carbono

E tudo sem sabor sem toque
Sem refrão sem suavidade sem nada
E os copos xícaras talheres
Sem nada

Nada existe pra mim
Sou o vulto do mundo
E ninguém sopra vida em mim
Ninguém me salva de não existir

Mas hoje olho os tapetes janelas cortinas
Sou todos eles e sonho e sonho e sonho
E estou a salvo

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Três e sete da manhã

Maaaa👌

São 3:07 da manhã. O casal está dormindo na cama. Ela acorda. Cutuca o marido: acorda, Paulo, preciso falar com você, é urgente!  Ele, meio sonâmbulo, meio acordado:
“é, eu também acho, eu também acho, Maria, o nosso casamento tá uma merda mesmo!”.
O que, Paulo, ela vocifera baixinho. Eu ia pedir pra você partir um coco pra mim. Deu vontade. Vai lá, por favor.
“Cala a boca, mulher, tá tarde, eu trabalho amanhã.”
Eu também, vagabundo, e o que você ia dizer do nosso casamento?
“Que casamento, Maria?”
Cala a boca e vai buscar o coco pra mim.
“Eu não vou”, e olha pra ela cansado como quem diz que vai virar pro lado e dormir pra sempre.
Então tá, mas eu estou grávida, Paulo.
“De quem?”, ele se vê perguntando, erguendo-se.
De você, seu retardado, de você! Ele se senta então, sabendo que ela não ia deixá-lo dormir tão cedo.
“Mas Maria, a gente nem faz mais amor”.
Amor a gente não faz mesmo não, mas você bebeu a garrafa de vinho toda outro dia e a gente fez direito. A gente não fez amor, foda-se o amor Paulo, a gente só fez. E eu estou grávida, vai buscar o coco pra mim.
“Maria, se você estiver mesmo grávida, quem faz as malas, eu ou você?”.
E ir pra onde, imbecil? Nós vamos ficar aqui.
“Nós quem, Maria? A gente existe?”.
Vai dormir, Paulo, eu vou lá abrir o coco pra mim e pro nosso filho já que você não é o homem o bastante. Vê se amanhã você toma seu remédio porque eu gosto mais dele do que de você.
"É mentira”, ele disse baixinho, sem ter certeza de que ela tinha escutado.
É mentira mesmo, seu filho da puta, mas você não merece ouvir a verdade! Paulo dormiu. Maria foi até a cozinha, abriu o coco, não comeu, perdeu a vontade, tomou o remédio, passou a mão pelo ventre, dizendo boa noite ao filho, talvez existente, talvez não. E dormiu. Nenhum dos dois acordou. Mas eles levantaram e escovaram os dentes.