Eu não sei que horas são, mas os relógios grandes aqui de
casa vivem querendo me informar. Eu odeio esses relógios porque parece que
ficam contando todos os minutos da minha vida. Mais tantos segundos pra você
viver. Mais uns anos pra você morrer. E aquelas badaladas esquisitas que me dão
vontade de quebrar tudo e de ir embora porque o tempo não importa mais. Tem um
céu. Um céu muito grande, longe de todo aquele tempo e aquelas horas e minutos
e segundos e badaladas e gritos e contagem regressiva. Aliás, quanto tempo será que falta pra viver?
Aí tem umas pedrinhas do meu lado e um céu muito imenso pra mim. Tem uma
piscina do meu lado, mas acho que eu vou me afogar mesmo são nessas nuvens
vermelhas. Muita nuvem vermelha aqui. Nunca fui boa pra contar estrelas, mas
vou começar a contar as nuvens. Uma, duas, três, quatro. Peraí, aquela ali
mistura com uma, que mistura com a outra, que some de um lado perto da lua. E
tem sangue pra todo lado, porque eu quebrei os relógios e tá todo mundo
sangrando nessa casa. E de repente não
tem mais nenhuma nuvem, porque elas desceram e tem sangue pra todo lado. Começa
a chover e eu posso chorar. Espera, não dá nem pra chorar mais. Cadê a água?
Tinha água aqui. Sei não, mas agora virou dia. E tem várias pedrinhas do meu
lado, e eu fico pensando por que eu não posso ser uma pedrinha. Eu me acho tão
grande, mas quando eu olho pro céu eu sou uma formiga. Imagina uma pedrinha.
Uma pedrinha perto do céu: nada. Um monte de nada. Por que eu não posso ser nada?
Acho que nada é demais pra mim e eu não sobrevivo mais com essas badaladas dos
relógios que morreram até alguém enterrar eles dentro de mim. Tem umas luzinhas
de natal que eu odeio que ficam piscando na sala. Eu odeio tantas luzes, isso
confunde meus olhos. Uma pedrinha. Pra quê olhos? Uma pedrinha não tem olhos.
Eu arranho um coração no chão com a pedrinha. Eu vou arrancar o meu coração e
mostrar pra todo mundo que eu tenho um, que ele tá aqui, ele tá batendo, mas
alguém tira isso de mim porque agora parece que eu não tenho mais, e justamente
porque parece que eu não tenho que tá doendo tanto o vazio de não ter nada. Uma
pedrinha. Eu sou uma pedra e não tenho coração. Eu virei pedra no meio de
pedras que são geladas. Mas ainda tem nuvem com cor de sangue. E ninguém sabe,
porque esse é meu pedaço do mundo que ninguém vê, porque são todos pedras. E pedras
não têm olhos. Aí eu posso conversar com as pedrinhas desde que elas não me
achem grande demais pra esmagar elas, porque elas são pequeninhas, mas são duras. Você olha e pensa: “ah, só uma
pedrinha”. Mas é forte, plena, pequena e discreta. Vai tacar uma pedrinha no
olho de um, vai. Acho que sou uma pedrinha. E o meu coração? Ah, meu coração
ficou ali no meio das nuvens. Só que elas foram embora e agora tô sentindo um
vazio enorme. É claro que pedra não tem que ter coração, mas é que ele bate
ritmado como os relógios aqui de casa, e agora eu tô ficando surda. Mas pedra
tem ouvido? Ah, sei lá. Deito no chão da cozinha que é gelado como pedra e me
pergunto quando será que isso tudo vai acabar. E eu me sinto quentinha com o
frio porque eu cansei de esperar amor dos outros, e agora eu vou ficar por
aqui, fugindo e indo embora, pro chão da cozinha. Porque ele não fala e eu só
quero alguém que me escute. A gente escuta tanto o que não quer, sente tanto o
que não quer, que depois de ficar com o
coração na mão tantas vezes, acaba entregando ele pras nuvens de sangue. E os
outros esperam tanto de mim pra brilhar como estrela e eu sou só uma pedrinha.
Nem adianta jogar pedra. Nem dói mais. Nem dói menos. Não dói mais. Não sinto
mais nada. Eu sou só uma pedrinha querendo ver o céu. Mas voar dói demais e eu
vou ficar mais uns minutos deitada no chão da cozinha. 5, 10, 15, 20 minutos.
Os relógios ficam fazendo barulho e eu não sei quanto tempo se passou. Eu perdi
os meus ouvidos. Os sentidos. Eu não enlouqueci. Eu sou só uma pedrinha. E eu
fico nervosa demais por ser pedra que acabo esquecendo as vírgulas e coloco
ponto final demais em tudo porque pedra não sente mas sabe machucar quem tentou
esmagar uma com as próprias mãos. Já é dia agora.
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