Olho para cima, para o céu denso infinito e escuro como um
piscar de olhos e tudo o que consigo ver é a lua minguante, verticalmente bem
acima de minha cabeça. Ao me inclinar um
pouco, a copa do telhado me indica um enorme buraco em forma de coração. Não,
não é ilusão, é realmente um coração. Não faz frio, tampouco está quente. É uma
típica noite de verão e eu só digo isso porque todo mundo fala do tempo quando
na verdade o tempo nem existe e é tudo ilusão essa coisa de que o tempo todo, o
mundo todo girando em torno do tempo. As luzes dessa noite chegam aos meus
olhos um pouco turvas e refletidas por causa do incômodo da lente que
apesar de tudo me faz enxergar. É importante conseguir enxergar mesmo que
doa. Como ver uma dolorosa morte nos pequenos detalhes. Ou mesmo os detalhes
bonitos: não se enxerga as folhas de uma árvore uma por uma, individualmente
sem doer um pouco, porque sempre dói pregar a atenção no que é bonito. Pelo
menos pra mim, porque eu esqueço até de piscar e aí fica tudo embaçado mas não
deixa de ser bonito e individual e único e indiferente de mim assim mesmo. Tudo
continua igual, mas eu sinto como se estivesse diferente. Como se os arrepios
que eu sinto quando um vento sopra fossem mais agudos, ou menos tortuosos e
torturantes, como se eu gostasse de doer só pra não ficar doendo. Como se eu
deixasse de sentir dor quando soubesse que ela está lá. Porque o que dói mesmo
é não doer, é não sentir nada. O vazio
me preenche de tantas formas possíveis e impossíveis que ele vai me engolindo e
vai abrindo-se um buraco pro infinito e de repente o buraco sou eu e o infinito
também. E é por isso que dói tanto, porque não dói. Simplesmente porque odeio
ver um monte de cores e sequer conseguir distingui-las, me faz mal e me deixa
doente escutar tantas vozes e mesmo assim elas não fazerem sentido algum, como
se fosse um sussurro em outra língua e eu sorrindo com o doce gosto de um adeus
que sempre volta. Eu não sinto dor quando a dor chega mansa e calma como uma
brisa porque ao menos eu tenho controle sobre isso. Eu sei domar a minha dor,
porque a minha dor não sou eu. Existe a dor e existo eu. Mesmo que quando a dor
exista eu não me torne assim tão visível por ela nem por ninguém. Mas acontece
que quando chega o vazio, o vazio não existe por si só, o vazio sou eu, e aí eu
não sei voltar pra mim e eu não sei o que é isso que me perturba tanto e eu
odeio não saber porque aí parece que eu vou adormecer sem saber nada e de
repente tudo pegando fogo, e ardendo em chamas que não há água que apague. E a
dor volta como uma velha amiga e eu gosto dela porque pelo menos ela tem forma,
pelo menos consigo vê-la sem me cegar, assim como consigo ver as folhas das
árvores e distingui-las uma a uma, mesmo que doa um pouco, porque ainda assim é
melhor do que não ver a dor e por isso doer tanto, porque quando eu não vejo eu
não sei o que é e todos estão rindo ou chorando e estou ardendo ou coexistindo
ou amando e eu ainda não sei o que é,
ainda não consigo ver, não sei do que falam. Eu gosto de te ver assim, ao
longe, ou perto, mas gosto de te ver nítido, gosto de saber o que eu sinto
mesmo que eu não esteja gostando de sentir, gosto de te ver bonito, gosto das
suas mentiras ou das suas verdades desde que elas sejam algo. Gosto de ver você
tomando forma na minha frente e voltando tão vivo como uma chama pra minha vida
e gosto que o amor reacenda mesmo que de fato eu nunca tenha conseguido apaga-lo,
porque mesmo que doa o queimar das minhas veias e mesmo que eu comece a cuspir
fogo e implorar por um socorro que nunca vem, e eu nunca sei chamar nem sei a
quem nem como e nem quando, ainda assim eu consigo vê-lo. O amor, você, o
cheiro, o toque, as suas loucuras tão suas, a sinceridade que esconde algum
segredo, as mentiras, a paixão, qualquer coisa. Assim mesmo, qualquer coisa, eu
vejo qualquer coisa cheia das coisas que são você que sou eu também. Mesmo que
doa e me sugue e me transforme, ainda assim eu consigo ver. E eu não preciso
clamar socorro porque você vem quente como uma tempestade e eu consigo te ouvir
se aproximando, e eu gosto que você me domina por completo e ainda assim eu
vejo tudo, muito melhor do que quando você vai embora e eu fico me tornando o
vazio que eu sou mais uma vez, sem sentidos, direção ou noção alguma do que
está na minha frente ou do que está acontecendo porque na verdade o que está
acontecendo sou eu, e eu não gosto quando sou eu que aconteço o tempo todo como
se não acontecesse nada. Não acontece nada. Não, eu não preciso pedir socorro,
hoje mesmo eu até tentei gritar, eu saí correndo pra longe daquela outra pessoa
parada na minha frente e eu não conseguia vê-la de repente porque é só você em
mim no vento em todos os lugares, e eu te vejo assim tão nítido como a dor e
quero bater e cuspir fogo no menino ao meu lado, eu quero cuspir você nele
porque ele não é você e eu não consigo vê-lo e é por isso que ele é tão feio e
daí vem a repulsa, o nojo e o ódio. Nojo de mim porque estou tentando pedir
socorro de novo. Vergonha de mim e dos meus tropeços, do modo como sempre vou
perdendo o sapato no meio do caminho e de que eu tento gritar e não sai nada,
não sai nada, ninguém olha pra mim, ninguém me vê, ninguém ouve. Olha cara, não
dá, eu digo pra ele. Não dá por quê? Porque não, porque não, quase grito sem
voz alguma, você é só um formato embaçado que faz parte do vazio e o vazio não
vai me sugar e eu não consigo ver você e vai embora agora, aí eu saio correndo
e não encontro lugar algum ou pessoa que possa me salvar da minha espiral de
paranoias, porque eu te amo eu te amo eu te amo ainda e por mais um dia e
última noite última lua última estrela última flor última nuvem, eu te amo como
se fosse a última e sempre a primeira coisa que eu fosse capaz de fazer. O seu
fogo atinge em mim lugares que nem chama de verdade atinge, porque você é muito
mais de verdade do que todas essas coisas que nem existem e que eu nem consigo
ver direito. Você me queima por completo e eu sinto dor mas eu consigo ver o
vermelho em volta e o laranja também e é muito mais quente do que essa noite
meio fria, meio quente, porque sei lá, ficar sem se queimar é muito mais
doloroso do que o calor do seu fogo. Faz tempo, faz tempo que eu não sinto os
seus braços, me abraça, quero te tirar do vazio, quero te tirar do vazio que é
não sentir dor e mesmo assim sentir tanta, quero tirar você daí, quero te tirar da sua
espiral de paranoias, vem morar na minha, quero te tirar do perigo que é achar
que não tem perigo nenhum. Eu te amo eu te amo. Vou correndo, gritando e
soltando fogo pelos meus pés e tropeçando e. Não há necessidade de implorar por
socorro, acho que dessa vez eu não quero mesmo ser salva por ninguém sem ser
você. Vem, me queima. E me salva da dor
de não sentir nada. De novo e de novo e sempre como nunca jamais e por tanto
tempo mesmo que o tempo não exista o tempo todo.
"você pode ter todos os defeitos do mundo, mas ainda é melhor do que o resto do mundo"
"você pode ter todos os defeitos do mundo, mas ainda é melhor do que o resto do mundo"
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