segunda-feira, 15 de abril de 2013

Vivendo o caos- manicômio da mente (Prólogo)

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Entrou novamente naquela sala tão conhecida do psiquiatra. Estava em dúvida se eram os anos de terapia ou se ele realmente havia ficado mais feio. A barba mal feita impregnava seu rosto de uma sujeira tamanha que a vontade do paciente era rasgar-lhe a face para descobrir o que havia além daquela máscara. Não voltara àquele consultório por desespero, como muitos podem imaginar, que a verdade seja dita agora, ele queria vingança. Ou respostas. Mas a desculpa mesmo que tinha trazido era o fato da receita de seus remédios para dormir terem vencido. O que ele não sabia é que deveria convencer aquele velho da sua lucidez para que ele próprio não saísse vencido daquela sala. Durante anos, para Ricardo, aquele lugar parecia mais um purgatório, o velho era o diabo, um juiz, mas no final das contas os dois são os mesmos, ou os três, porque o paciente (assim devemos chamá-lo?) gostava de se incluir nas coisas.
-Bom dia, Ricardo, faz tempo não lhe vejo! Pausa. Silêncio. Pena que tenha voltado, mas pelo visto obteve grandes progressos!
Aquela voz entrecortada por vírgulas e suspiros falsos o faziam querer enfiar um dedo na garganta, a mão inteira, aliás, vomitar ali em cima daquele divã imundo, falso branco vagabundo, maldito cheiro de álcool impregnado nas paredes, nas vias áreas, no sangue, maldito sangue latejando nas veias descompassado, ouvidos surdos da maldição daquele bom dia vomitado, como pedras que se jogam esperando que brotem flores.
-Progressos? Hahahahahahahaha. Subitamente ficou descontrolado, curvando-se de tanto rir, balançava a cabeça, frenético com aquela sensação prazerosa de desdém que fazia da cara do psiquiatra. Doutor, nessa vida a gente só anda pra trás, disse-lhe, pausando o êxtase que sentira cinco segundos antes, e também porque seu rosto estava queimando e uma fúria começava a subir-lhe pelos ombros, pelos ossos, como um choque elétrico.
-Acalme-se, Ricardo, só o que não tem jeito na vida é a morte.-e naquele momento pegou a caneta e começara a fazer suas habituais anotações em um caderno mofado, guardado na primeira gaveta.
Que ódio sentiu daquele caderno, nojo daquela caneta e de tais mãos imundas. Quis cuspir, quis cuspir em tudo, olhou pela minúscula janela do consultório que também lhe dava arrepios, mas não havia nada, não havia nada, era um dia meio tanto faz, tanto fez, o sol não apareceu e tampouco estava chovendo, não havia nada ali, nem aqui, refletiu, não existe nada aqui também.
Lembrou-se. Como um choque. Um choque. Finalmente a lembrança que viera vasculhando o cérebro durante dois anos, dois anos inteiros, havia surgido do nada em sua pele, desabrochando-se como uma flor, uma flor negra, e agora tudo estava tão claro que era como se a resposta estivesse sempre ali. O rosto ficou inexpressivo:
-Foi você.- disse lenta e pausadamente.
-Eu o quê?
-Você que me mandou...-não sabia prosseguir. Então respirou e cuspiu as palavras ao mesmo tempo que levantara-se de um salto e apontara-lhe o dedo:
-Você me mandou para aquele manicômio! Aquele maldito inferno! Verme! Cretino! Como pôde? Os choques, os malditos choques elétricos, antes tivesse me enviado a morrer! Desgraçado!
Àquela altura, todos ao lado de fora da sala já tinham ouvido os gritos, não havia dúvidas de que ele havia enlouquecido mais uma vez, e logo todos os funcionários vieram a socorro do médico.
-Está precisando de ajuda aí, doutor?
-Não, está tudo sob controle, pode se retirar- disse à enfermeira, mas sem despregar os olhos de seu caderno. O fato de encontrar-se indiferente a tais gritos fez com que Ricardo ficasse ainda mais furioso.
-Fale comigo! Olhe pra mim, infeliz!- continuou sem olhá-lo.
Virou a mesa do psiquiatra, então, e fez-se um grunhido ensurdecedor, mas calou-se. No espelho atrás da mesa dava pra ver como seus olhos estavam vermelho sangue de raiva. Estava indignado, queria quebrar as vértebras do médico até que implorasse por socorro, mas parou por questões óbvias, ou nem tão óbvias assim, um espelho era a maior tentativa de lucidez criada pela humanidade, e o desgraçado daquele psiquiatra havia o colocado ali, bem no meio da sua cara. O objetivo daquele aparato, porém, foi de contramão ao que se esperava. Ricardo perguntou-se quem era, ali, olhando aquele espelho. Era um truque, uma armadilha, aquele não era ele, é claro que não. Quis ser cego, aquele reflexo não podia ser ele, aquilo era um monstro, não era ele, ele era feliz, estava bem, estava tudo O.K, não é assim que se diz, tudo sob controle? O seu cérebro estava o enganando, estavam lhe tirando sarro, é claro que não era ele, nem era essa sua fisionomia, ou será que era, malditos dois anos naquele manicômio?

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Sem nome (seu nome)

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Fechei os meus olhos. O que eu estava sentindo? Naquela manhã linda, no meio daquela chuva maldita, em meio a um raio simples de sol. O que era isso? Olhei pra longe. Ao longe e tão longe. Os dias passaram. As estações mudaram e eu ainda não tinha conseguido encontrar uma explicação. Os sentimentos são como as flores, as amarelas, que refletem o brilho do sol, eles são puros como o raiar do dia, murcham, crescem, florescem, brilham, apagam-se. A cada canto que se olha há uma flor. Em cada canto uma cor, um amor, uma dor. As que nem nasceram e as que já se apagam. E tudo sempre em constante mudança. E eu então? Eu entro nessa história onde tudo começou. Onde uma flor morreu e outra nasceu. E ambas continuam existindo. Costumava ser um vale escuro, um céu cheio de nuvens pretas, e eu era uma florzinha pequena, tão pequeninha, tão escondida, incerta, duvidosa, no meio de uns arbustos, daquelas que as pessoas nem arrancam pra dar pra alguém porque não enxergam, ou mesmo porque não conseguem ver beleza. E eu ia absorvendo a tristeza das ruas, chovia demais, eu não via nada, um feixe de luz sequer, murchei, fiquei invisível, por pouco não morri, doía tudo em mim, eu respirava dor, pura dor. Até que, veja só, como o destino encaixa as peças direito, veja bem, tudo mudou. Em um dia, sou incapaz de me lembrar qual, mas esse se diferencia de todos, apareceu-me uma pessoa, era um rapaz, um lindo rapaz, ele tinha um sorriso lindo, no meio de toda aquela chuva ele tropeçou em mim, não vou negar que doeu, se é que eu ainda sentia algo, mas depois me olhou com um cuidado mágico, tão mágico, ele conseguiu me ver, e justo eu, nossa, justo eu que achava que nem existia mais, justo eu que era tão pequena, tão nada, e ele era grande, bonito, ele existia, bem na minha frente, me olhou e sorriu. Depois ele foi embora, mas todos os dias voltava, e a cada dia parece que chovia menos, todo dia ele olhava pra mim e com aquele sorriso, ah com aquele sorriso o sol apareceu, não sei nem se era o sol ou o sorriso dele mesmo, mas tudo foi ficando um pouco mais claro, a dor foi diminuindo, jamais deixando de existir, mas a ponto de eu quase nem senti-la. O tempo foi passando e cada dia era mais bonito, cada dia aquele menino ficava mais bonito pra mim, e eu florescia, me tornei uma flor maior, mais bonita, acho que nem por fora, talvez por dentro, mas é isso que importa, fui me consumindo daquela luz rara, eterna, incrível, magnífica, esplendorosa. A luz do seu sorriso. E você nunca precisou me arrancar da raiz, você nunca quis me deixar morrer, você me deixou ali onde eu estava, sem me tirar do meu lugar, mas voltava todo dia pra me ver, me observar, e eu me nutria disso, ali naquele cantinho eu viajei o mundo inteiro só de olhar pra você, só de poder ter a sua atenção, no meio do nada o céu abriu, as nuvens ficaram mais bonitas, tudo tinha mais cor, mais vida, eu sentia tudo escandalosamente bem, onde deveria estar, cada coisa, cada coisa criada por esse universo, cada pedaço de mim se sentia perdoado, e eu nem sabia de quê ou por que, mas só de olhar pra você eu me sentia perdoada de tudo. Eu não fazia ideia do que eu sentia por você, mas era algo tão bonito, uma coisa surreal, era um sentimento sem nome, assim mesmo, sem nome, mas que eu queria gritar ao mundo se tivesse um. Mas eu tinha medo de morrer, de sofrer nessa promessa, mas você voltava todo dia pra mim e como não amar alguém como você? Amor, era isso, era, é amor, e eu demorei tanto tempo pra descobrir um nome, tão simplesinho, mas cheio de significado. E eu quero que você saiba que aonde você for nunca vai ser muito longe, nunca tão longe que eu não possa te encontrar, porque só de ver o seu sorriso eu tenho vontade de te dar a mão e sumir daqui, pra algum lugar em que eu possa te olhar pra sempre, só de te ver eu tenho vontade de rir até perder a voz, a cabeça, noção das coisas, aliás, a noção das coisas eu já perdi faz tempo quando eu te encontrei. E hoje eu posso te dizer que eu te amo, que bom que você existe, se você não existisse eu te inventaria, e se você não aparecesse eu daria um jeito de te encontrar. Você pulou do mais lindo dos meus sonhos na minha realidade, na minha frente, se bem que nem isso, eu jamais teria a ousadia de sonhar com algo tão maravilhoso como você, tão incrível, olha eu aqui, procurando palavras que nem existem só pra poder te dizer como eu estou feliz, procurando palavras que são incapazes de te dizer o quanto sou grata por você não ter desistido de mim, palavras que não exprimem o quanto a vida ficou mais fácil desde que você quis ficar comigo, assim, só por ficar mesmo. Eu carregava um peso tão grande nos meus ombros, dentro de mim, na minha alma, uma angústia imensa, e tudo parece tão mais leve desde que você chegou, desde que você decidiu dividir esse peso comigo. Você me disse que queria me levar pro outro lado do rio, pra um lugar mais bonito, mas você está enganado, o lugar mais bonito já é qualquer lugar em que eu estou com você, porque toda vez que você olha pra mim admirado eu sinto que vou explodir, eu me sinto alguém, uma flor bonita, eu sinto uma coisa tão bela por dentro, uma coisa que você não vai ser capaz de entender. Hoje eu tenho certeza que as pessoas nos aparecem na hora certa, no momento exato, nem meio segundo a mais, nem meio segundo a menos. Você me trouxe felicidade e esperança quando eu não conseguia mais sorrir, você me trouxe força quando eu não consegui encontrar beleza dentro de mim, você me presenteou com o mais belo de todos os sentimentos, algum anjo me trouxe o mais lindo dos anjos, que foi você, que cuida de mim e me protege. Você é o raio de sol mais bonito que eu já fui capaz de ver e de sentir. E eu nem sei mais o que escrever porque só queria te dizer com tudo isso uma coisa que não existe, uma coisa que eu não consigo nem tocar, mas espero que você entenda que você é lindo, você é a coisa mais bonita que já me aconteceu, você é um presente que eu quero guardar comigo sempre, é um diamante que eu prometo sempre lapidar pra nunca perder. Eu sei que o que mais existem por aí são pessoas dizendo eu te amo, mas, meu amor, não há mais nada que eu possa dizer. Eu te amo.

Nota: Espero que esse texto tenha muitas vírgulas porque é só o começo de tudo.
Nota 2: “Se existisse no mundo, com suas regras terríveis, uma brecha pra roubar no jogo, se existisse um único vão por onde se escapa do óbvio, se desse mesmo pra passar correndo atrás de Deus e pular no abismo do que queremos porque queremos. Eu escolheria você. Se me dessem um único pedido, eu escolheria você. Se a vida acabasse hoje ou daqui mil anos, eu escolheria você.” Tati
Nota 3: A foto te lembra algo?

quinta-feira, 14 de março de 2013

Os tais dos morangos

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O café já esfriava. Olhava de um lado para outro, mexia a colherinha vagando em doces deletérios. Agora estava muito doce, mas antes era tão amargo, queixou-se. De amargo já não bastava a si próprio.
-Posso me sentar aqui?
Nem levantou os olhos, mas sabia pela leveza da voz quem ali se encontrava. Nada disse. Não havia nada a ser dito.
-Como você está?
-Eu? Ah, estou. Não?
A mulher encolhida na cadeira soltou um longo suspiro, mais para preencher aquele silêncio cravado como unhas na pele.
-É só uma conversa, você pediu para eu vir.
Aquele homem começou a tremer, e veja bem, fazia sol, meu bem, fazia um sol danado, fazia tanto sol que era difícil até enxergar algo. Não que já não estivesse meio cego.
-Pedi- e pela primeira vez olhou-a, mas não conseguiu vê-la.
-Então...-ela certamente começara a dizer algo, mas ele interrompeu.
-Quantos anos se passaram desde que?- a palavra faltou. Desde que. Algumas coisas não cabem nos nomes.
-Já fazem quatro anos. Você lembra? Sentados aqui. Você rabiscou alguma coisa no meu braço, eu te dei um tapa e você disse que nunca ia me perdoar. -riu.
-Você também não me perdoou. -sorriu triste, mas firme.
-Como não? Aqui estou.
-Você nunca está. Procuro em tanta gente um espelho teu. Não vejo nada, eu não vejo nada.
O olhar da moça encontrava-se distante, perdido.
-Quero ir embora- disse repentinamente.
-O que te impede?
-Eu não sei.
-A gente nunca sabe.
(Silêncio).
-Faltam uns cinco minutos pro sol se pôr.
-Quanto tempo faz desde que.
-O tempo não existe.
-Ultimamente acho que nem eu- e havia nele algo tão cansado, mas tão cansado, que aparentava mais estar com uns noventa anos.
-Hein?
-Existe um pedaço de mim, alguma coisa podre, um tumor, é isso, eu tenho tumor na alma, um lixo que nunca consigo arrancar, tirar fora do peito, isso está me matando, você entende, existe uma coisa que dorme dentro de mim até mesmo quando estou acordado, sabe, você vai embora agora mas por favor volta, faltam só dois minutos pro sol se pôr e vai ficar tudo escuro e esse cheiro de mofo doentio tá me deixando mal, eu sou um morango mofado, estraguei, assim, fora de época. Tá vendo aquela gaveta ali, demorou tanto tempo pra arrumar. -parou de falar, como se subitamente tivesse tomado consciência de sua voz.
-Desculpe. Acabei perdendo um amigo no meio dessa amargura. Você devia falar isso pro seu analista, eu não sou ninguém meu caro, nada, nadinha meso, olha só, nem aqui eu tô. Não sei onde errei, mas a gente nunca sabe né, sei que eu me fui, desculpa ter deixado minhas coisas espalhadas, é que eu achei que ia vir um vento sabe, um furacão, coisa do tipo, e ia levar tudo embora.
-Mas tudo ficou, esse gosto de mofo, esse cheiro de mofo. Você gostava tanto de morangos. Sinto muito, eu plantei um pé deles aqui fora mas não cresceu nada sabe, nadinha, nem um moranguinho só, aí eu falei pra você vir, faz quatro anos que eu plantei e nada de você chegar, aí eu te liguei, não conseguia parar de chorar, o pé secou, tadinho dos morangos, nem nasceram e mofaram, nem existem e são podres, aí eu te liguei, mas se você quiser ir tudo bem. Vai chover, o sol acabou de se pôr, quem sabe não vem por aí aquele vento que você falou.
-Olha lá, uma estrela, apontou, faz um pedido, reza, chora, ah lá outra estrela. São tantas.
- Elas parecem tão iguaizinhas, coitadas, já morreram.
-Mas ainda estão brilhando, olha você, meio morto assim, seus olhos ainda brilham mais do que elas, olha lá, elas tão brilhando pra você.
-As estrelas não sabem da minha existência.
-E daí, e daí, disse meio impaciente, o importante é o espetáculo que elas fazem, mesmo longes e mortas, veja só, você também.
-Você não ia embora?
-Você quer que eu vá?
-Mesmo longe ainda vou poder olhar pra você no céu, você não disse isso de nunca parar de brilhar, mas fica, tá escuro. Fica, aí quem sabe os morangos crescem, tadinhos, você gostava tanto deles. E eu mofei. Desculpa desculpa.
-Gosto mais de você do que dos morangos frescos.

"Abriu os dedos. Absolutamente calmo, absolutamente claro, absolutamente só enquanto considerava atento, observando os canteiros de cimento: será possível plantar morangos aqui? Ou se não aqui, procurar algum lugar em outro lugar? Frescos morangos vivos vermelhos. Achava que sim. Que sim. Sim" Caio Fernando Abreu, Morangos Mofados

sexta-feira, 8 de março de 2013

Epifania das linhas paralelas


Como se um gesto ou uma palavra pudessem mudar toda uma vida. E como se a vida fosse só um instante. Pois então era. A moça, debruçada na janela que dava para um vasto cenário em abstrato, sentiu uma súbita vontade de gritar. Mas era mais como um grito interno, a garganta fechada, a epifania daquela sensação chegava cada vez mais devagar, rondando o lugar, brotando das flores, varrendo o chão. Descolando, talvez, uma parte plural de todo um conjunto que logo corria pra se esvair dela. O grito se transformou em um riso perpétuo. Não irônico, nem obstante, talvez doentio, obscuro, familiar, sozinho ou indiferente, mas nunca a tristeza estampada nos lábios. Essa coisa não existe, da tristeza esboçando um sorriso, é sempre o sorriso esboçando uma tristeza. Mas nem era nada, era só desejo de trocar os discos de notas agudas por um de notas graves. Todos estavam enferrujados, mas aquela música parecia durar para sempre. Aquele riso incontrolável de quem nem sabe o que quer mesmo querendo tanto saber parecia durar uma eternidade, mesmo que o eterno dure só um segundo. O pra sempre é um grito que não chega a ser formado, um desespero no vácuo. A garganta fechada e o coração muito mais, como se um instante pudesse trazer a resposta, e a brisa morna fosse fechar as abas de um esboço muito mal-feito naquela tarde. Havia um outro esboço, alguém do outro lado daquele imenso corredor, como um rabisco, só se enxergava os contornos, nem luz tinha e não era tampouco uma sombra. Havia chegado depois de um instante, após uma vida inteira, e aquela interrogação pairava no ar enquanto vinha andando em sua direção aquela figura. Uma interrogação que deixava solta a mudança paralela ao fracasso e à felicidade, como duas linhas paralelas se encontrando no abismo do infinito. Por si só e por si mesmas.
-Vamos?
-Vamos.

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Esse texto vai sumir


Hoje, olhando pela janela em mais um dia claro, me dou conta de que tudo vai sumir. Esse sol vai sumir, mas não o sol: o que vai desaparecer é o brilho que emana hoje, diferente de ontem e diferente dos raios de luz de amanhã.  Tudo virará pó, porque o que existe no hoje, aqui nele se perde. Eu também sumirei, porque amanhã nem eu sou mais o que hoje me parece: já terei ouvido novas palavras, visto coisas novas e sentido diferente. Amanhã sou outra, mesmo vestindo-me com as mesmas roupas. O outro dia não nos permite ser o que já fomos. A história pode possuir os mesmos roteiros, mas nunca os mesmos personagens. Nós nunca somos nós: somos vários que não somos amanhã. Somos vários que só vivem 24 horas. Como pássaros que chegam e vão. Eu vou sumir. Você também. Talvez um dia eu vire tu e tu me vires:  quem sabe do avesso, de cabeça pra baixo. Quem sabe por inteiro, talvez por metade. Tenho medo de piscar e perder um detalhe que nunca voltará atrás ou à frente,  medo de parar no tempo e para o tempo parar. Tudo some e reaparece, mas nunca permanece.  E estou assustada de perder um momento, como se a resposta pudesse escorregar de minha mão. Nada é real. Nessa manhã as coisas pairaram no ar como uma neblina espessa que mal deixa espaço pra se respirar. Isso também vai sumir. Os cheiros, as cores. Tudo é igual, mas nunca é. E está tão perto que quase posso tocar. Tão longe que quase posso fugir.


“Um homem nunca passa duas vezes pelo mesmo rio. Nunca é o mesmo rio. Nem o mesmo homem” Heráclito

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Todo carnaval tem seu fim



Estava escuro. A fumaça inebriada a impedia de ver algo naquela noite. Cambaleando em meio aos destroços do que parecia uma festa de rua, encontrou um lugar vazio no meio fio e se sentou. Os amigos tinham ido embora, talvez tivessem ido dar uma volta, e ela havia se perdido. Estava sozinha, mais uma vez então, em todos os sentidos que abarcam essa palavra. Solidão. Tão doce e tão cruel como um fim de tarde que vai esmagando a noite com os últimos raios de luz.
Era carnaval e ela não estava feliz. Pelo menos não se sentia assim. Aliás, fazia um bom tempo que não se sentia como nada. Não se sentia porque não sentia. Anestesiada e entorpecida, ela nem estava mais lá. Não se sentia parte de nada, não pertencia a lugar algum, e pela primeira vez em todo esse tempo, aquela garota de cabeça baixa no canto da rua percebeu que não fazia mais sentido querer desaparecer: ela já havia desaparecido. Como toda a fumaça na rua, ela estava em todo lugar, e ao mesmo tempo não estava. Desaparecia pelos ares no mesmo segundo em que era formada.
 Olhou para os lados e se perguntou se alguém poderia vê-la. Alguns pareciam estar olhando, mas o essencial é invisível aos olhos, e logo percebeu que eram todos cegos de alma. Ninguém poderia enxergá-la. Não naquela noite. Estava escuro demais. Seu celular tocava em algum de seus bolsos, mas nem se deu ao trabalho de ver quem era ou pegá-lo para atender.
 O estado de entorpecimento era tanto que a qualquer movimento ela poderia desmoronar e se tornar a poeira da rua. Cada gesto doía demais, mas doía porque não doía, e mesmo assim era necessária força para aquilo. E ela estava esgotada. Quis gritar, mas não se lembrava mais como. Não naquela noite.
Era difícil se focar em algo em meio a tanto barulho, que apesar de tudo, era melhor do que o silêncio. Talvez por isso estivesse ali. O silêncio era insuportável, e mesmo assim corria nas suas veias.
Tudo que conseguia pensar era em voltar para casa. Estava com fome, mal havia comido, havia dias que não se alimentava direito ou andava sóbria. Levantou-se. Mal conseguia respirar em meio à multidão. Os passos eram lentos e imprecisos. Alguém agarrou seu braço, e ao se virar para ver quem era, tinha sido agarrada por um estranho. Ela não conhecia aquele rosto, mas também não tinha força para se livrar daqueles enormes braços. Tais lábios desconhecidos pareciam queimar os seus com tamanha brutalidade, que tudo parecia pegar fogo. Ela estava ardendo em chamas. Quando finalmente foi solta, sentiu uma vontade inexplicável de vomitar. Começou a chorar. Sentiu-se suja da cabeça aos pés. Estava imunda. Mesmo se tomasse dez banhos, jamais seria capaz de se livrar daquela sujeira. Odeio eles, cuspiu. Odeio todos eles.
Ainda precisava caminhar até o ponto de ônibus, cada passo era uma eternidade. E naquela noite, a eternidade tinha um gosto podre.
Acendeu um cigarro e por um segundo teve a impressão de que alguém havia chamado seu nome, porém depois começou a rir consigo mesma. Ninguém podia sequer vê-la, como poderiam chamá-la? Mas o som prosseguia e ao sentir uma presença atrás dela naquele ponto de ônibus praticamente vazio, virou para trás.
Tudo que avistou foi um enorme sorriso e um par de olhos marejados de lágrimas. Não se recordava muito bem daquele rosto, talvez em sonhos antigos, mas aquele sorriso.Jamais poderia esquecê-lo. Ouviu a pessoa comentar:
-Você não parece feliz.
Quis perguntar se alguma vez já havia parecido, quis pronunciar o seu nome, mas não se lembrava. Quis dizer algo, mas não conseguiu. Então apenas olhou com carinho e deu um sorriso, mas quando se deu ao tempo de piscar, as sombras haviam envolvido aquela figura. Não havia ninguém lá. Ela estava sozinha. Ao subir para o ônibus, tudo ficou preto. Nada era real. Não naquela noite. Não mais.

Nota: pra você, Jú, espírito livre, que me faz sentir menos sozinha nesse mundo.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Aceito




Quase ninguém suporta uma pessoa que sente demais. Alguém que pensa muito, vá lá, é ótimo, quem não gosta de alguém com boas ideias e senso crítico? Mas quem aguenta uma pessoa que sente mais do que os outros? Durante toda a minha vida eu sofri com isso. Sinto demais, escrevo demais, transbordo demais, porque sempre fui intensa em tudo que faço, e normalmente as pessoas se assustam e vão embora. Irônico, mas durante toda a minha vida, muita gente se assustou com o tamanho do meu coração. E deve ser por isso que eu fui socando ele dentro do peito pra ver se eu me tornava uma pessoa melhor. Será que eu me tornei? Acho que não, mas eu tinha boas intenções a respeito disso. Eu realmente tinha. As pessoas têm medo do que sentem e ficam com muito mais medo quando encontram alguém que não o possui. Deve ter virado pecado sentir. É doença. Todos sentem quando já deu o tempo de gostar, e eu não, eu gosto pelo prazer de gostar de alguém. O tempo, o infeliz do tempo. Horas marcadas, datas marcadas, tempo certo pra isso e aquilo. Claro que é preciso antes conhecer alguém direito pra ter certeza do que se sente, mas o verdadeiro lance é que as pessoas se assustam quando alguém diz o que sente antes da “hora”. E começaram a achar que todo mundo que diz antes do estipulado tempo diz da boca pra fora. Não. Não mesmo. Eu sempre fui do coração pra fora. Só que as pessoas me ensinaram a ser do coração pra dentro. É preciso ter vergonha dos próprios sentimentos pra não ser ridicularizado nessa vida. Porque sentir demais é exagero. Quem sente demais é louco, já viu isso, amar demais, e ainda antes do tempo? Bobagem. O negócio é fingir. E vão todos por aí se fantasiando de pedras ambulantes porque sentir não vale a pena. Sentir virou coisa de gente corajosa. De gente ousada. E eu sofro por ser assim, porque por sentir demais, acabei pensando demais, e de tanto tentar diminuir meu coração eu aprendi a sentir menos. Mas sentir menos me faz ficar doendo mais, como se eu não tivesse a licença de sentir o que eu sinto, mas sentisse mesmo assim. E então eu fico me sentindo oca. Porque assim é aceitável. Sentir demais virou coisa de gente corajosa. E mesmo sentindo de menos eu continuo sentindo demais. Ninguém precisa me aceitar. Ah, meu Deus. Eu me aceito. Eu aceito ter nascido com um tipo de angústia inexplicável que me faz amar o mundo e odiá-lo ao mesmo tempo. Eu aceito. Quem disse que eu tenho medo? Eu me aceito.