As ruas me parecem enormes demais. Quando as olho, aqui de casa, mal consigo me mover. As ruas são ponto de encontros. Assim como as casas e os bares e os shoppings. Que estão nas ruas.
A rua vem antes.
É delas que surgem o meu medo do que eu possa ver e do que posso não ver. Ando pelas ruas buscando encontrar o que existe.
As ruas estão apinhadas e vazias. Elas gritam também quando estão vazias.
A rua é a terra, são as histórias, as pessoas, os lares, as matanças e os sequestros.
A rua existe antes daquilo que existe.
Eu vou pra lá porque uma parte de mim existe antes do existir.
Quando eu era pequena e me olhava no espelho não conseguia entender o que vinha por trás do meu rosto e das minhas ligações cerebrais. Não conseguia entender o que era o mundo material.
Eu sempre fui de dentro pra dentro.
Às vezes não gosto de olhar. Me dá medo me olhar e ver que sou uma figura estranha que enxergo a mim. Como é uma pessoa ver a ela mesma? Eu era muito nova pra pensar essas coisas.
Acho que foi o divisor de águas da minha infância. A passagem pro sofrimento.
Eu não conseguia entender o que estava acontecendo comigo.
Achava o corpo humano um espaço muito limitado para se ficar.
Achei aprisionante todas as minhas partes. Foi aí que a vida começou a acontecer para mim.
Quando eu me vi no espelho da casa de uma amiga e não conseguia acreditar que o meu cérebro era tudo que eu era. Era inconcebível.
Eu não me sentia com 12 anos de idade, não me sentia com aquele corpo, rosto, com meus braços e dentes. Eu me via tão diferente dentro de mim. Foi como se eu tivesse morrido. Eu morri quando a vida começou a acontecer.
Nunca achei que o meu corpo era um lugar meu. Não acho que ninguém mora dentro do seu corpo.
Eu não tinha mais medo de nada como tinha medo daquele mistério. Eu olhava pra mim e não me via.
Eu tive consciência de mim.
Eu me olhei e fiquei alheia de mim mesma.
Foi quando eu pensei: o que esse cérebro faz dentro da minha alma?
O que a minha alma faz dentro desse cérebro?
Foi aí que eu percebi.
Que eu estava olhando pra mim na terceira pessoa. Como uma pessoa que observa um gato sendo atropelado.
Eu tive horror daquilo. De me imaginar naquela prisão de mim mesma.
Ei, sai de mim.
Eu queria me sair.
Não conseguia me olhar sabendo que eu me olhava.
E que o meu eu sabia que eu estava olhando.
Não foi um monólogo, foi uma conversa.
Era a vida conversando com a matéria.
Eu nunca consegui explicar isso pra ninguém. Mas os espelhos são o maior medo da minha infância.
Até agora, explicando isso por meio dessas palavras, não me parece como eu gostaria.
É um momento que não pode ser explicado apenas com o corpo.
Não há linguagem.
Não há nem coração para isso.
É como a rua.
Existe antes de tudo existir.
Isso que está em mim existe antes de eu nascer.
Não consigo chamar de alma. Me parece tão vago.
É como dizer eu te amo quando você ama. É tão pouco que não dá nem vontade de dizer. Se fica naquela tristeza incomunicável.
O que me vem agora eu não posso comunicar.
Eu não me comunico nunca.
A pessoa que lhe fala é a pessoa que me olha no espelho.
Não há expressão.
Desde aquele dia eu fiquei muda. Achando que era coisa de gente doente.
Mas mais do que isso: era o medo de não conseguir falar o que é.
E até agora eu só estou escrevendo o que não é.
Tento me pegar, mas estou sempre escapando do meu entendimento.
Aquele momento foi pra mim como o parto e a morte ao mesmo tempo. Não conseguia me mexer. Tinha enfim descoberto que a própria prisão era a do corpo.
Não queria que soasse tão mal assim.
Mas eu me senti paralisada pela descoberta.
Era uma coisa tão minha que eu só consigo falar disso agora, anos depois.
Eu sentia que tentando explicar doeria mais.
E agora está doendo porque não sei dizer.
Eu ficava imaginando todas as minhas veias e todo o meu sangue e todas as minhas cavidades. Me sentia incapaz de lidar com aquilo.
Foi uma diferença de alguns instantes apenas. Eu fiquei me olhando por alguns instantes, e esse sentimento não era de palavras como agora parece ser.
Esse sentimento não era de nada.
Era um susto que eu não conseguia concretizar em pensamentos.
Eu me era estranha a mim.
Me achava alheia.
Não que eu quisesse ser outra pessoa.
Eu não queria ter uma forma.
Era mais do que não querer me ser, era não querer ser.
Doía demais olhar para aquele rosto. Eu não me sentia ali. Me senti observando um ser sem vida.
Foi aí que a vida aconteceu. Quando eu me olhei sem vida.
Eu me olhei fora do meu corpo.
Eu estava fora de mim.
Eu me perdi por alguns instantes e achei que não fosse nunca mais voltar.
Ao mesmo tempo me estava tão dentro que foi quase como se eu fosse total uma parte do meu fígado, do meu estômago.
Olha, está sendo difícil para mim.
Estou contando o meu maior medo e mesmo assim ele não sai de dentro.
Isso que eu senti veio antes de eu saber como é que o meu corpo o sente.
O meu medo é tão grande que ele não se encaixa na linguagem.
Como é que se diz que dá medo existir?
Assim, eu tenho medo de existir. Não é nem ódio. Não é tristeza. É medo.
Eu não consegui mais me olhar direito.
Por uns anos odiava me ver em fotos.
Não me reconhecia.
Não me encaixava na matéria.
Quisera eu nunca ter visto o meu reflexo.
Era muito pavoroso poder encostar em mim, poder sentir que havia sangue pulsando em mim. Como eu estava ali se eu estava morta?
Como meu coração batia se eu me olhava fora do meu corpo?
Eu fiquei alheia de mim.
Nunca mais quis conversar comigo de novo.
Até hoje. Até agora.
Em que olhei a rua e pensei nisso.
Pensei que ninguém se reconhece na rua.
Mas a rua é o espelho de todos.
A rua é toda a existência.
Lá a gente se vê.
Lá nos vemos uns aos outros.
Lá está toda a misericórdia e a falta de paz.
Lá estão os meus casos felizes e as minhas tristezas.
No meu espelho está a minha miséria.
Este mundo é a minha jaula.
O meu corpo é a cela maior, e na rua eu saio para tomar banho de sol.
Estou sempre tão presa em mim.
É como se eu não fosse capaz de me libertar.
Como se dar um passo fosse uma dor enorme porque seu corpo te acompanha.
E você se vê tão de fora.
Como excluído de uma mesa de bar.
É mais. Mas é tudo que sou capaz de dizer agora.
Eu saí daquele banheiro e fiquei olhando pra cara da minha amiga. Como se diz pra alguém que ama a gente que a gente se foi? Como dizer pra quem a gente ama que a gente se quer ir?
A vida é um tipo de morte.
Foi quando eu descobri que eu estava morta no meu corpo que eu comecei a estar pronta para a vida.
É como dormir um sono sem sonhos. Isto é viver.
É olhar para dentro de si e reparar que o que existe dentro de você aconteceu antes de você nascer.
É respirar em um parque e sentir que você é parte do local.
Se não houvesse o peso do corpo eu não teria tanto medo assim.
Ainda é difícil me olhar por muito tempo. Me acho diferente do que sou.
Completamente alheia.
Viver é como meditar para sempre.
É se olhar de dentro pra dentro.
Descobrir que todas as coisas que te formam são aquelas que também não te formam.
Que tudo existe antes de tudo existir.
Que nunca teve um começo e nunca terá um fim.
Acredito que a vida seja para sempre e a morte seja temporária.
A morte é de cada um.
A minha foi o me olhar no espelho com medo da existência.
Mas foi morrendo que eu comecei a entender que aquilo era a Vida.
A Vida se fazia em mim.
Minha vida começou quando eu tinha 12 anos.
Pelo menos foi quando eu tomei consciência dela.
Tudo só passa a existir de fato quando a gente se percebe enquanto existência.
Isso vale para todas as outras coisas.
A morte é de cada um.
A Vida também.
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