segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Carta de um infeliz

Found a place | via Tumblr

Hoje quis tocar seu braço e encostei no meu. Senti muita saudade e a minha pele parecia fria demais pra me confortar. Eu não consigo nem comprar pão mais. Você que resolvia tudo, talvez por isso a minha vida parou um pouco sem a sua voz pra me dizer o que eu deveria comprar, o que eu deveria fazer, quanto eu deveria receber de troco. Era sempre você quem me colocava pra frente na estrada da vida. Veja o ser humano desprezível que me tornei. Nem deitar consigo mais. Nenhuma posição me parece confortável o suficiente. Os remédios não ajudam muito, só me deixam um pouco mais devagar do que eu já costumava ser. Às vezes esqueço de tomá-los, e acho que você ficaria bem brava comigo. Me desculpe por ter tornado a vida tão mais difícil do que precisava ser. Mas eu não consigo aceitar o fato de nunca mais olhar o seu rosto no sol. É muito difícil tomar café, pagar as contas, viver. As pessoas me dizem pra viajar, recomeçar, mas nos inúmeros lugares pra onde fui, em nenhum deles encontrei você. Todos os dias chego em casa querendo te contar algo, para depois lembrar que só restam as paredes para me ouvir. Dizer que me sinto vazio seria quase um pleonasmo, mas não me sinto sozinho. Ao menos. Não nessa casa em que cada garfo e faca já guardaram o seu toque. Eu vivo te procurando em todos os lugares, e não quero viajar, não quero recomeçar, não quero te esquecer. Seria egoísmo demais continuar vivendo sem as lembranças da unica pessoa que me fez viver de verdade. Sinto muito por trocar os pares das meias e ter bagunçado o armário todo. Eu estava procurando a camisa que usei no nosso primeiro encontro. Ainda tinha a marca do seu batom. Estou envergonhado, meu amor, estou muito triste mesmo. Por não conseguir levar a vida tão bem do jeito que você queria que eu tivesse feito. Mas estou tentando, afinal, eu sempre te disse: por você eu faço qualquer coisa.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Vela acesa

.


Era como uma vela acesa
No escuro
E eu queimava em brasas
E eu ardia em chamas

Era apenas uma vela
Que seguia iluminando túneis
E poços e esgotos e almas
Calmas

Vela acesa lúgubre
Dos que rezam malditos
A cópia de um ilustre amor
Fúnebre

Era uma vela acesa
E eu que sempre tive medo
De riscar os fósforos
Respirei fundo e fui-me

Queimei mais do que as duas mãos
Trêmulas
Mas fui-me: a toda parte
Ingênua

Eu ardia em chamas
E achava lindo
O fogo se alastrando
Tomando conta de tudo

E o mundo em silêncio
Eu achava lindo
Só uma vela acesa
A minha voz, presa

Até que bateu um vento
E enfim: o fogo tremeu nas bases
Um rastro de luz teimava ficar
Mas a luz da vela apagou-se

E eu que nem tinha mais fósforos
Nem dedos pra queimar
E eu que perdi o medo
E deixei de achar linda

A coisa mais linda do mundo
E eu que queimava em brasas
Vi a luz da vela se apagar
E o que disse? Nada!

Foi-se, como quase tudo
E eu nem me lembrava da sua existência
Fraca, insípida, e rápida
Mas que, enquanto pôde, iluminou mares e morros
Mesmo que minha, não fosse

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

As coisas difíceis de dizer



A primavera chegou. Com ela todos os cheiros de todas as flores do  mundo. As pétalas e as folhas voam em direção ao vidro do carro. Está tudo bem. Aquela moça de 18 anos, Cecília, de cabelos ruivos e peito aberto, tinha muitas coisas pra resolver naquela sexta-feira. Mas estava tudo bem. Pelo menos enquanto o vento soprava e ela tinha aqueles preciosos momentos de paz quando se estaciona o carro sob o cascalho e o barulho tem um gosto de casa. Cecília nunca se sentiu em casa de verdade. Só uma vez, mas não entremos em detalhe. Arrumou-se sem muito cuidado, não estava indo para um encontro, não exatamente, sua intenção não era impressionar alguém. Sonhava em se esconder, mas não pretendia ver alguém com um aspecto de alguém que não dormia há anos. A verdade é que dormia tempo demais. Tempo vago? Talvez. Mas isso não era o mais importante. O mais importante são os detalhes, talvez por isso Cecília tenha optado por um perfume mais fraco do que por um mais forte. Ah, os detalhes. Antes de sair, se certificou de que tinha fechado todas as portas. Não era medo de ladrões, o medo real era de invadirem o seu íntimo, como já havia acontecido uma vez. Uma vez que pareciam tantas porque tantas não teriam doído como uma só. Há umas semanas bateram na sua casa pra perguntar se tinha alguém e ela já tinha ido. Pra longe. Pra onde for. Pra onde forem as flores.
No caminho, começou a pensar sobre como, para ela, o amor era a única coisa que importava na vida. Ela não tinha perdido a fé no amor, tinha perdido a fé nas pessoas. E enquanto suspirava com mais ar do que realmente existia em seus pulmões, percebeu que estava muito cansada. Muito cansada nem rompia com tal limite em que um ser humano podia chegar. Estava exausta. Teria chorado se por acaso se lembrasse como. Quando olhou pro céu, esperando encontrar por ali uma resposta que nunca tinha encontrado, o tempo fechou, começou a ventar muito forte, as flores, que antes pareciam vivas e cintilantes, tinham tomado o estranho aspecto de mortas. Começou a chover. Estava a pé e já muito longe de casa para voltar e pegar um guarda-chuva. Preferia chegar encharcada do que ter que regressar. Na verdade, sempre foi assim, os riscos faziam o seu coração bater mais forte. Além do mais, seu destino eram apenas mais 5 quarteirões à frente. Ela não iria voltar pra casa, não com aquele sinal dos céus. Voltar pra casa era como seguir em frente sem ter resolvido o passado. O amor era exatamente como a chuva. Lindo, mas poucos se arriscam a sair de casa e ficar molhados. Há os que usam as famosas capas de chuva. Ela nunca gostou de se esconder. Que a vissem assim, encharcada até a alma mesmo. Chovia demais. O amor é assim, de uma hora pra outra, de uma chuvinha fina, pra um pé d’água. Começou a chorar. Sem problemas, ela não ia voltar. Estava feia, com o cabelo bagunçado, rímel escorrendo. Como se isso importasse perto de um coração cheio de venenos e de remendos. Se sentiu suja como se tivesse levado um banho de esgoto e não de chuva. Porque queria, pela primeira vez na vida, ser vista como era. As pessoas colocam máscaras no seu rosto onde só existia transparência. Era a menina mais diáfana do mundo. Longe de ser a mais linda, mas era a mais real. Escorrendo, para na frente de uma casa marrom triste. Tão triste quanto ela estava. Toca a campainha, trêmula, morrendo de frio, e pergunta se ele pode conversar. Um segundo, ele diz. Quantos segundos um segundo apenas pode possuir. O tempo era tão triste quanto aquela casa marrom.
-Cecília! Meu deus! Entra, por favor, você vai ficar doente –diz Lucas
-Lucas, eu já estou doente, e não quero entrar nunca mais. Só preciso de 3 minutos, ok?
-Não consigo te ouvir com esse barulho da chuva!
-ENTÃO EU VOU GRITAR!
-Agora sim. Você sempre foi escandolosa mesmo. Estou acostumado –ele diz por entre a água da chuva, e Cecília teria tempo de notar o famoso sorriso triste se não estivesse tão desesperada para dizer aquilo que a estava cortando em pedaços. Triste. Triste. Triste. Triste. Essa palavra não é mesmo triste?
-Eu queria muito, Lucas. Eu queria muito não ter tido que voltar. Eu queria nunca ter ido embora, não ter mudado de cidade, não ter aceitado aquela maldita proposta. E eu sinto muito nunca ter conseguido te dizer adeus, mas você mesmo me disse uma vez, existem coisas difíceis de dizer,  como na casa da minha mãe, “não quero mais comer” ou “eu não amo mais você”. Mas sabe Lucas, qual foi a coisa mais difícil de dizer?
-O que, minha ruiva?
-A coisa mais difícil, e a que eu vim aqui pra dizer, é que eu te agradeço. Pelos dias mais felizes da minha vida. E te odeio por não ter lutado por mim, mas quem sou eu, que nunca lutei por você também? E sinto muito nunca ter dito adeus. Você merecia isso. Nós merecíamos isso. Eu te amo, eu só não gosto mais de você. Por esse rosto triste que eu vejo em você que é o mesmo rosto triste que eu guardei em mim.
-Cecília, cada gota de chuva caindo é uma palavra que tentei te dizer. Eu estava paralisado pela dor de ver você partir. Talvez por isso não tenha conseguido lutar. Você bem sabe que eu nunca fui muito corajoso. Eu sinto muito, ruiva. Sinto por tudo, eu também queria ter tido a chance de te dizer isso e...
Lucas começou a chorar. O que mais doía em Cecília, mais do que qualquer coisa no mundo, era vê-lo chorar. Tinha presenciado aquela cena tantas vezes e em cada uma delas parecia doer mais, então o abraçou. Molhados, tremendo, com medo, tristes. Lucas teve certeza, naquele momento, que aquela mulher era um furacão e ele era só uma chuva fina, mas por algum motivo louco ele sempre gostou de se molhar.
´-Adeus, Lucas.
-“Eu não quero mais comer” era mais fácil do que isso, Ceci.
-O quê?
-Adeus, ruiva.
As flores no caminho de volta pareciam vivas mesmo tristes. Ela estava seguindo pra trás, no caso, pra frente, sem nunca ter partido de verdade. E já que os detalhes são importantes: a única vez que tinha se sentido em casa era no caminho entre as duas casas. A casa marrom triste, as flores tristes, e mesmo assim, tudo mais bonito do que jamais um dia poderia ser. Era primavera.

“Quem sou eu para falar de amor, se o amor me consumiu até a espinha...”

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Borrado


La Tricheuse. | via Tumblr


Ficou uma mistura de ressentimento e tédio borrado pela desimportância que o silêncio tomou. A marca da procura da minha face em qualquer um desses espelhos quebrados. O pouco que sobrou foram umas lascas de vidro que custei pra encontrar o brilho. De tanto rastejar acabei cortando as palmas das mãos. Ficou a estranheza da falta da rotina, sorrindo calada um corte cruel. Foram-se doentes as minhas mãos geladas e paradas. Ficou o calor solitário de uns poucos instantes. Foram-se as paredes brancas, as fomes tantas, o medo do mundo. Ficou o grito do insulto, o sorriso imundo, as muitas palavras. Depois de tudo do nada, a alma gelada, a pele maltratada; ficou o veneno nas veias, a moldura perfeita e um anjo caído. Ficou o cabelo cortado, o perfume usado, todos os cheiros decorados. Foi-se a textura macia, a água da pia. Foi-se o abraço apertado, o pranto calado, o último recado. Ficaram-se os olhos roubados, o vermelho dos lábios, a pura falta do fim. A pergunta mais triste, na verdade, se o roubo do presente dava fim ao passado, era só a vontade de responder aquilo que nunca perguntei. Um anjo surrado, de porcelana, quebrado. O sonho roubado que ninguém me concedeu. Ficou a pergunta mais triste, se eu não tinha mais nada pra dizer: não naquele momento, afinal, algumas coisas não cabem nos nomes. Alguns nomes não cabem nas coisas. As asas nunca couberam no anjo e ele se espatifou no chão, sem fazer barulho, em menos de um segundo. E com ele, todo o peso do mundo.


(A tempestade, o mar calmo, e finalmente, um ri(s)o raso)

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

A única certeza


Eu tinha certeza de tanta coisa na minha vida. Certeza da mão quentinha nas minhas costas, certeza quando acordava de manhã. Certeza de você, quando você me ligava numa tarde qualquer. A gente se acostuma tanto com o sol nascendo de manhã que quando ele não nasce é esquisito. Quase engraçado. Mas não chega a ser porque existe uma linha tênue entre as coisas de verdade e as coisas que podem ser só sentidas com o coração.  Eu tinha certeza que não ia ser feliz nunca mais. Que bobagem. Que bobagem é a vida. Que estranho. Hoje joguei umas palavras fora (do computador) e tive certeza dessa frugalidade que é viver. Hilário. Quase entediante de tão louca. Hoje apagando essas palavras pensei no que minha terapeuta disse do martelo, dos pregos e da madeira. Se retirarmos os pregos da madeira, as marcas permanecem lá após anos. Ou quando um espelho inteiro lindo quebra e a gente tenta limpar com as mãos sangrando em busca de um brilho qualquer. Esse texto não é sobre nada em especial, só o fato de que eu hoje parei pra rir de como a gente tem tanta certeza das coisas e no final descobre que não era nada daquilo. As certezas são eternas enquanto duram. E engraçadíssimas quando passam. Vivemos em busca delas, pra ver se fincamos um pouco o pé no chão em meio a esse mundo que gira rápido demais. Mas meu pai sempre me disse que se a gente afunda o pé demais na areia a onda nos leva. É por isso que eu ando mudando os pés de lugar às vezes. Pra dar pé viver. Pra dar pé amar. Pra onda não levar. Meu pai anda um pouco cansado já pra me segurar quando eu tô com medo do mar. E nunca se sabe se os salva-vidas vão chegar a tempo. Bobagem contar com a sorte. A sorte é só mais uma dessas certezas equivocadas e de última hora que a gente coloca na cabeça pra não morrer afogado num oceano de dúvidas. Eu engasguei um pouco com o sal do mar pra aprender que eu não sou peixe. Mas minha vó sempre me chamou de sereia. Ah, que bobagem a vida. As coisas são tão efêmeras. Como as folhas que despencam das árvores num aceno tímido. E não voltam nunca mais. Temos certeza das coisas enquanto elas sorriem, abraçam, beijam. Temos certeza das coisas enquanto são, depois que elas apodrecem, murcham, não são mais. Nós e nosso mundinho de certezas. Certezas tão passageiras e subestimáveis. Coitadinhas das minhas certezas. Reguei com tanto amor. Como rosas que uma vez tiradas da raiz morrem em dias. Eu tinha certeza no quentinho das mãos todos os dias. Acostumei com as mãos geladas, que apesar de tudo, são minhas e são mais dignas. Um pouquinho que seja. Porque não quero ter certeza. Não gosto, não aprovo, não faço questão. Coitadinhas. Tão pequenas e imaturas que nem mereciam existir. Mas é necessário que existam porque viver sem elas é como viver sem a mão do meu pai no mar quando eu era pequena. Mesmo que eu tivesse que nadar um pouco pra alcançar. Porque eu tinha certeza que ia amar tanta gente pra sempre. E porque sou tão capaz de amar que minhas certezas tiveram ciúmes de mim. E me roubaram só pra elas. Porque amar não precisa ser pra sempre. Já foi. Mesmo não sendo. Só de ser amor já foi pra sempre. Sinceridade na alma é tudo, mesmo que o outro não tenha existido de verdade. E eu ri da minha falha. Eu brinco dessa coisa porque gosto de acreditar na eternidade como um véu de noiva que o noivo levanta pra beijar como se aquele fosse o único momento importante na vida. Porque eu achava graça do meu pai me dizendo que o mar ia me levar e eu sempre tive tanta certeza que um dia ia levar mesmo. Nem veio. O tempo passou e o mar nem veio mais. O tempo passou e é só isso. De novo. Não que algum segundo ou milésimo de segundo tenha deixado de passar. É só que, de uns tempos pra cá, ele tem passado rápido demais. Talvez por causa das dezenas de rosas que eu joguei no mar pra Iemanjá. Talvez o mar nunca veio porque eu nunca fui. E talvez eu nunca tenha ido porque tinha certeza que ele viria. Que azar o meu. Nunca contei com a sorte. Que bom. O tempo passou. É só isso. Minhas rosas estão no Pacífico, murchas, por aí, como as minhas certezas. Tinha tanta certeza do quentinho nas costas e do sorriso que aquecia as minhas manhãs, tardes, noites, certeza de que nunca mais fosse ser feliz, e a única certeza que eu tenho é que, infelizmente e super clichê, amanhã é mesmo outro dia. Até que a certeza do outro dia vire pó como o resto todo. 

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

A bomba-relógio sem ponteiros

XOXO. | via Tumblr


Meu coração é um piso frio de madeira. Ou de cerâmica. que a gente deita à noite, meio que pra confirmar que é frio mesmo. Meu coração é um grito mudo no vácuo. Meu coração é um balão inflável que inchou pra dentro. E estourou. Meu coração são pedaços emendados de papel. Manchas de tinta. Ou de sangue. Meu coração são cacos minúsculos de vidro. Cachoeiras imensas de água. Ou de lágrimas. Meu coração é um estilingue no olho do objeto amado. É o gatilho que não chega a ser puxado. Meu coração são cortes fundos na pele. Sangrando, sem estancar. Meu coração são cicatrizes bonitinhas que não falam. E com elas, converso. Meu coração não tem válvula de escape. É um aglomerado de gente na Avenida Paulista. Meu coração é claustrofóbico. Dentro de um ônibus lotado. Meu coração são as portas fechadas, e as janelas, abertas. Meu coração é um barco naufragando em alto mar. Sem vela. Sem trégua. Meu coração, desesperado, por um triz na corda bamba. E ainda assim, samba. Meu coração, apaixonado, se joga do penhasco. E acha o máximo. Meu coração é uma bomba-relógio. Sem ponteiros. Meu coração é um pinheiro. Todo seco e congelado. E que rende frutos. Meu coração é o diabo. Meu coração é um cão dos diabos. A flor diabólica que alguém plantou. Meu coração, cheio de espinhos, sem carinho. A flor maldita, à espera de um sopro de vida. Recaída. Meu coração é um gol nos 45 minutos do segundo tempo. É um choro, sem lamento. Meu coração é um tormento: egoísta, masoquista, maniqueísta. Meu coração é uma nuvem linda que chove e some. Meu coração é um raio na cabeça de alguém. Na minha. Meu coração é uma topada na quina da mesa. A voz presa. Todos os ossos quebrados. Meu coração, se falasse, sufocaria. Meu coração é mais do que isso. É bem mais do que tudo isso.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

O único ódio que eu sinto (nua)



Eu em paz com as minhas coisinhas. Eu em casa feliz e normal. Eu, pela primeira vez, com a felicidade calminha que nem dói porque não explode no peito. Eu, pela primeira vez, só e tão cheia de mim. Eu sem dor, eu sem falta, sem pouco, sem metade, sem angústia, sem aborrecimento. Sem intensidade. Eu sem mim e mesmo assim tão eu e tão pouco tempo. Eu feliz, normalzinha no meu mundo e o mundo todo acontecendo lá fora. Eu, pela primeira vez, sem me importar. Eu que tentava diminuir o mundo pra caber nele. Sofrida, dolorida, retraída, manca. E agora eu me diminuindo pra fazer parte do mundo sem que ele me esmague como um gigante de dois pés impiedosos. Eu normal em casa, eu normal tão estranha que nem é normal. Eu sempre tão eu que meu normal ainda é uma ventania capaz de derrubar a minha casa. Mas eu normal eu. Tão normal que vou tentando simplesmente. Me sentindo com 10 anos de idade e minha alma velha e cansada assim mesmo. Eu me fantasiando pra poder ser feliz. Eu normal e quieta, em casa, com as minhas coisas. Pela primeira vez, sem sentir ódio disso. Esse ódio das coisas mornas e normaizinhas. E eu frívola, insossa, morna, normalzinha em casa sem sentir nenhuma pena ou ódio disso. Eu menos eu, tentando me subtrair pra poder ser sem dor. Eu sem o peso nas costas, eu leve, eu sem a carga que me fez mais eu do que jamais um dia serei. Eu numa soma de menos apenas pra continuar seguindo sem ser zero. E eu aqui e tanta gente passando por mim do outro lado da rua. Gente que já entrou na minha vida, na minha casa, e mais íntimo e sufocado que isso: na minha alma. Desconhecidos conhecidos que me conhecem bem, e ao mesmo tempo, não. Gente de carne e osso, vestidas com uma capa preta maldita, fúnebre e transparente. Porque quando é você lá e eu aqui e eu uso essa capa preta, me sinto nua mesmo assim. Porque a gente outro dia estava tomando sorvete feliz e você fazendo cara de nojo pra mim. E só porque eu odiava aquela cara de nojo mas amava você. Amava tanto você que não cabia no meu peito, e agora tenho nojo. E você mais um, menos um, e ainda assim você mais do que ninguém. Porque quando eu saí correndo na rua e você tomou os meus pulsos, dizendo que nunca me deixaria sozinha. Porque você foi embora e me deu as costas sem sentir nenhuma pena disso. E eu te amava sem sentir pena de nada. Dois extremos da vida. Os dois lados da moeda. Você costumava brincar disso. Deu coroa, meu chapa. Pena que dessa vez não teve graça. Eu aqui e você aí. E eu nua a olhar pra mais um desconhecido conhecido. Daqueles que um dia foram únicos e daí viraram pó. Eu nua achando engraçado e triste. E eles, vestidos, se cobrindo em vão. Puros, cobertos e sujos. E eu aqui sem entender. Nunca entendi, e graças a Deus, nunca irei. Mas aceito, então, já que foi a única coisa que me restou. Eu meio chorando, meio rindo, olhando, pela centésima vez, um desconhecido conhecido do outro lado da rua. Esse sim, posso dizer, o único ódio que eu sinto: eu nua, vestida da cabeça aos pés, mais uma vez.

"A vida seguiu tão normalzinha, eu falei pra minha analista. Tanto que você tá estranhando, ela respondeu. É. Sorrimos sem intensidade e duração, da casca que agora separava meu sangue de salivas. São águas que correm paralelas com uma pele no meio. Ela só disse 'olha que bom' e ser tratada como uma pessoa não foi mais tão horrível. " Tati Bernardi