sábado, 14 de dezembro de 2013

Olhos nossos



Os olhos dele eram como duas chaminés grandes
Por dentro deles saía uma fumaça clara e escaldante
Que me impedia de enxergar
Alguma coisa

Os olhos dele eram da textura de suas mãos
E me lembravam paredes muito brancas e com um leve
Tom de azul
Serenos

Por detrás dos olhos dele havia uma tinta permanente
Pregava na gente
E eu tomei vários banhos dos seus lábios
E nada

Os olhos dele soavam como o relógio
Ficavam se movendo, se movendo
E nunca perdiam um brilho
Me sorriam e acenavam aqueles olhos
Eles emudeciam e me davam adeus, pálidos e lívidos

E cada segundo sem os seus olhos
Foi como ser cega desde que nasci
Eu não sabia andar sem os seus olhos
Não podia me mexer sem os seus olhos
Encolher as pernas e tudo o mais que você sempre disse
Que era coisa de gente estranha
Eu não conseguia fazer.

E mesmo se você saísse por um instante
Pra beber água
Eu queria ser a água que você bebia
O copo que você seguraria
Mas eu jamais poderia ficar
Sem os teus olhos

Seus olhos cheiravam grama molhada
A alma guardada
Um abismo camuflado cheio de luz
E eu queria entrar dentro deles
Arrancar as suas vísceras
Tomar o seu sangue
Te deixar cego
Como eu me sentia toda vez que você se ia

Onde eu iria guardar o meu amor se você dormia com eles fechados
E em paz
Pra quem eu iria sorrir se você não estava mais olhando pra mim
E todo segundo que você não estava lá
Eu não sabia fazer nada
Não tinha ninguém pra olhar pra mim.

E eu não sabia ser sem os seus olhos
Mas eu nunca fui nada perto deles
Eu decidi ser alguma coisa
Então no dia que você virou-se e foi, com a sua mochila nas costas
Eu tirei os seus olhos das órbitas, e coloquei no lugar os meus
Pra que você nunca pudesse mais me ver
Nunca mais pudesse mais me olhar ou me tocar ou me espremer
Me sufocar, arder, mandar e implorar
Com esses teus olhos.

Eu coloquei os meus pra você sempre me ver com outros olhos
Que não esses
E porque eram minhas e não as tuas vísceras
Que você começou a não mais me suportar
Como os ricos odeiam os pobres
Pelo simples fato deles existirem

Eu fiz você me olhar com os meus olhos
Porque assim, eu nunca mais sofreria a maldade dos teus
E em um segundo, como se não percebesse a loucura do ato
Eu passei a te detestar também
Você me olhava com os meus olhos
E eu nunca mais olhei nos teus

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

A carta que eu te fiz que começou do fim

What if?


Hoje sonhei com gritos. Palavras mudas. E decidi jorrar sangue já que poucas vezes fui ouvida. Tudo vai bem. Sei que você não perguntou. Do quintal descobri que aquele barulho que assustava tanto a gente era só a tartaruga. Ela escondeu de novo. Igual você, aquela vez. Meu pai continua colocando o DVD que a gente tanto detestava aos domingos e nos aniversários. As cachorras nunca mais latiram pra você porque você nunca mais apareceu por aqui. Ficou um silêncio triste. Na sala, no meu quarto, na cadeira onde eu deixava o seu moletom. Perto da piscina onde a gente olhava o céu. Preenchido pelos calafrios da falta das suas mãos em mim em uma noite fria. Esse amor me dava 40 graus de febre. Silêncio substituído gradualmente pela resignação. Que nunca desejei. As minhas tias finalmente pararam de perguntar sobre você e me dizer aquelas coisas de “quem ama vai atrás”. Elas não faziam ideia de que eu te seguiria pelo universo se um dia tivesse tido a chance. Fazer o quê. Voltei a comer e até a achar graça na vida, olha só, a mesma pessoa por quem você se apaixonou um dia. Acabei descobrindo que aquela parte de mim que você tanto detestava era só outra parte de você tentando morrer. Veja bem, meu velho amor, você foi embora da minha vida e nem me deu a chance de te agradecer.  Você me soltou as algemas. Elas eram de plástico e mesmo assim eu não tinha forças para me libertar. Obrigada. Hoje sou uma pessoa melhor. Só de te olhar. Porque se antes te tomava como exemplo, hoje continuo fazendo isso, só que de um jeito que você não ia gostar de ouvir. Algumas coisas são melhores quando não são ditas. As flores que você me deu no nosso aniversário de um mês murcharam dias depois. Coincidências não existem e o que havia entre nós estava morrendo também. É que as rosas amarelas nunca seriam tão bonitas quanto o que eu sentia por você. Nos dois casos, reguei igual um jardineiro inexperiente e desesperado. Seus olhos cansados e marejados hoje olham outros olhos, mas, ainda, de vez em quando, esbarram com os meus. Que ainda continuam verdes no sol. Outras pessoas tiveram a chance de notar. Continuo sendo quem eu sou. Aquela que você não me deu espaço pra ser.  Aquela que você tanto diminui depois com o discurso disfarçado de antes de “vá atrás dos seus sonhos”. Eles estão se realizando, mas dessa vez eu não precisei das suas palmas. Apenas parei de procurar respostas para as suas perguntas. De uns tempos pra cá, o jeito foi transformar os pontos de interrogação em pontos finais. Você deve ter guardado o porta-retrato que te dei. Nós dois, sorrindo. Numa dessas gavetas sujas que você nunca abriu pra mim. Ou deve ter pisado em cima até os cacos sumirem. Na verdade, esse é o tipo de coisa que eu faria. Sempre fui mais radical. Você e seu maldito medo de jogar as coisas fora fazendo as pessoas acreditarem que jogaram. Justo eu que sempre quis guardar tudo. Que ironia, virei mais uma coisa da sua vida cheia de coisas que não são ela. Você abriu mão de tudo por alguém que não chora muito, mas também não te olha com meus olhos encantados e não te chama de vil nas horas vagas.  É que eu tenho certeza que você pesquisa as palavras que perguntava pra mim. Ou talvez tenha perdido o interesse por elas. Minha priminha parou de perguntar de você. É que eu disse pra ela que você tinha me feito chorar. Todo mundo te esqueceu. Eu só não sei onde você foi parar porque nunca mais te vi. Não canto mais a música que era nossa, mas ela tocou tantas vezes que parou de doer. O problema é que você tinha mais apreço pelo que sentia por mim do que por mim mesmo. Eu poderia ir aí à sua casa gritar, eu poderia ir pra rua gritar, eu poderia gritar daqui, poderia desopilar todos os cantos da minha garganta. É só que aprendi que nenhum grito teria a intensidade suficiente pra você ver o que aconteceu. Meu anjinho me levou pra voar a 100 mil metros do chão e fez questão de me jogar lá de cima. Do que valeu tudo então? Não foi nem o tombo grande, foi o fato de você ter jogado que doeu mais. Cada palavra vomitada foi um prego no meu coração. Já retirei todos e as marcas continuam lá. Imatura, covarde, hipócrita. Martelando, cuspindo, sangrando, escorrendo. Um som que nunca para de latejar. Ironia ser chamada de covarde sendo que retirei coragem de onde já nem tinha pra te defender dos  que não entendiam o meu amor. Me lancei na sua frente e recebi um tiro pelas costas. Imatura e hipócrita sendo que aceitei calada a maior hipocrisia que já vi acontecer diante dos meus olhos. Pra você era mais fácil me deixar errar do que tentar consertar as coisas. Você e esse seu sorriso que eu achava lindo, mas que hoje me parece oco. Coragem deve ser deixar sem resposta por vários dias alguém que sempre procurou palavras pra te explicar. Alguém sofrendo com manchas cada vez mais escuras por cima da carne. Com manchas cada vez mais escuras embaixo dos olhos. A sinceridade que te dei merecia um fim mais digno. Você deixou que eu pisasse em falso enquanto andava livremente. E depois fingiu a queda pra que todo mundo sentisse pena de você. Eu já estava no chão mesmo. Nunca precisei derrubar você pra ser alguém melhor. Já me bastava o peso da minha própria dor. E olha que, dessa vez, eu tinha muita coisa pra dizer. Depois de um tempo o covarde foi você, e somente você. Que me deu a capacidade de sonhar, mas pisou com brutalidade em cada um dos meus sonhos (o que acabou me dando mais força pra ir atrás deles). Isso é só pra dizer obrigada, mesmo que você tenha ido pra um lugar muito distante e nunca seja capaz de ler. É que depois desses meses todos você já deveria saber que eu nunca vou deixar de escrever sobre qualquer coisa que me marque da cabeça aos pés. Você querendo ou não, eu sou dona das minhas palavras. Principalmente das que calei. Você sempre será escravo das que  pronunciou. Obrigada por ter chegado, e principalmente, por ter partido. Hoje sim te chamo de vil. Mas você só vai descobrir o que significa no dia que conhecer alguém assim.

(Escrito em setembro)



OBS: “Outro dia uma amiga me perguntou o que você tinha me ensinado.  A gente estava conversando sobre os legados que as pessoas deixam em nossas vidas e ela quis saber qual tinha sido o seu. E você? Que raios você me ensinou? Fiquei sem saber na hora, fiquei sem saber o que responder pra ela. Mas hoje, posso dizer que foi você quem me ensinou a lição mais importante da minha vida: você me ensinou a sofrer. É claro que eu sofri na escola, quando para alguém me enxergar eu tinha de promover bizarrices. Mas eu era muito nova para me separar das bizarrices e acabava também chamando a minha atenção: será que eu sou bizarra? Depois, em casa, quando eu dobrava direitinho o uniforme para o dia seguinte e me sentia um papel de parede bege que ninguém entende pra que serve, eu pensava: um dia um príncipe vai me levar pra longe dessa falta de vida, dessa falta de beleza, dessa falta de compreensão, dessa falta de cor, dessa falta de sei lá o que porque eu era novinha demais pra saber o que faltava. Esperar o raio do príncipe sempre disfarçou minha dor, sempre me refugiou dela. Mas quando você me mandou seguir meu caminho sozinha, fiquei sem saber como fugir da dor. Você era meu príncipe. Depois de tantos amores estranhos, pequenos, errados e tortos, finalmente eu tinha reconhecido, no seu olhar centralizado e no seu sorriso espalhado, o meu príncipe.  Sofri pra caralho, como diz por aí quem sofre pra caralho. Mais do que músicas bacanas, frases inteligentes e lugares descolados, você me ensinou o que realmente importa aprender na vida: que ela pode ser uma grande, imensa, gigantesca merda. E que não existe porra de príncipe porra nenhuma. Que nem ninguém nem nada pode te levar para longe de nada. É isso e pronto. E é assim pra todo mundo. E pronto. Qual o drama? Essa dor trouxe vasos jogados, bitucas eternas de cigarro em longas discussões pesadas, tardes perdidas em odiar o mundo, cabeças viradas, corredores frios, papéis de parede beges e grupinhos festivos e fechados. Mas agora já passa da meia-noite, e pra te falar a verdade, eu já não sofro mais o nosso fim faz tempo. E, pra te falar ainda mais a verdade, eu acho mesmo que você foi o príncipe que eu esperei a vida inteira. Você chegou e me levou embora. Levou embora a menina que tinha medo de sentir a vida e esperava uma salvação para tudo. Quem sobrou é essa desconhecida que se conhece muito bem em suas bizarrices, substitui o bege pela cor do verão, tem uns pais gente boa ainda que malucos, adora os poucos e estranhos amigos, não espera mais pelo cavalo branco, mas talvez esteja pronta pra amar de verdade. Amar um homem, e não um príncipe.” Tati Bernardi

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Carta de um infeliz

Found a place | via Tumblr

Hoje quis tocar seu braço e encostei no meu. Senti muita saudade e a minha pele parecia fria demais pra me confortar. Eu não consigo nem comprar pão mais. Você que resolvia tudo, talvez por isso a minha vida parou um pouco sem a sua voz pra me dizer o que eu deveria comprar, o que eu deveria fazer, quanto eu deveria receber de troco. Era sempre você quem me colocava pra frente na estrada da vida. Veja o ser humano desprezível que me tornei. Nem deitar consigo mais. Nenhuma posição me parece confortável o suficiente. Os remédios não ajudam muito, só me deixam um pouco mais devagar do que eu já costumava ser. Às vezes esqueço de tomá-los, e acho que você ficaria bem brava comigo. Me desculpe por ter tornado a vida tão mais difícil do que precisava ser. Mas eu não consigo aceitar o fato de nunca mais olhar o seu rosto no sol. É muito difícil tomar café, pagar as contas, viver. As pessoas me dizem pra viajar, recomeçar, mas nos inúmeros lugares pra onde fui, em nenhum deles encontrei você. Todos os dias chego em casa querendo te contar algo, para depois lembrar que só restam as paredes para me ouvir. Dizer que me sinto vazio seria quase um pleonasmo, mas não me sinto sozinho. Ao menos. Não nessa casa em que cada garfo e faca já guardaram o seu toque. Eu vivo te procurando em todos os lugares, e não quero viajar, não quero recomeçar, não quero te esquecer. Seria egoísmo demais continuar vivendo sem as lembranças da unica pessoa que me fez viver de verdade. Sinto muito por trocar os pares das meias e ter bagunçado o armário todo. Eu estava procurando a camisa que usei no nosso primeiro encontro. Ainda tinha a marca do seu batom. Estou envergonhado, meu amor, estou muito triste mesmo. Por não conseguir levar a vida tão bem do jeito que você queria que eu tivesse feito. Mas estou tentando, afinal, eu sempre te disse: por você eu faço qualquer coisa.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Vela acesa

.


Era como uma vela acesa
No escuro
E eu queimava em brasas
E eu ardia em chamas

Era apenas uma vela
Que seguia iluminando túneis
E poços e esgotos e almas
Calmas

Vela acesa lúgubre
Dos que rezam malditos
A cópia de um ilustre amor
Fúnebre

Era uma vela acesa
E eu que sempre tive medo
De riscar os fósforos
Respirei fundo e fui-me

Queimei mais do que as duas mãos
Trêmulas
Mas fui-me: a toda parte
Ingênua

Eu ardia em chamas
E achava lindo
O fogo se alastrando
Tomando conta de tudo

E o mundo em silêncio
Eu achava lindo
Só uma vela acesa
A minha voz, presa

Até que bateu um vento
E enfim: o fogo tremeu nas bases
Um rastro de luz teimava ficar
Mas a luz da vela apagou-se

E eu que nem tinha mais fósforos
Nem dedos pra queimar
E eu que perdi o medo
E deixei de achar linda

A coisa mais linda do mundo
E eu que queimava em brasas
Vi a luz da vela se apagar
E o que disse? Nada!

Foi-se, como quase tudo
E eu nem me lembrava da sua existência
Fraca, insípida, e rápida
Mas que, enquanto pôde, iluminou mares e morros
Mesmo que minha, não fosse

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

As coisas difíceis de dizer



A primavera chegou. Com ela todos os cheiros de todas as flores do  mundo. As pétalas e as folhas voam em direção ao vidro do carro. Está tudo bem. Aquela moça de 18 anos, Cecília, de cabelos ruivos e peito aberto, tinha muitas coisas pra resolver naquela sexta-feira. Mas estava tudo bem. Pelo menos enquanto o vento soprava e ela tinha aqueles preciosos momentos de paz quando se estaciona o carro sob o cascalho e o barulho tem um gosto de casa. Cecília nunca se sentiu em casa de verdade. Só uma vez, mas não entremos em detalhe. Arrumou-se sem muito cuidado, não estava indo para um encontro, não exatamente, sua intenção não era impressionar alguém. Sonhava em se esconder, mas não pretendia ver alguém com um aspecto de alguém que não dormia há anos. A verdade é que dormia tempo demais. Tempo vago? Talvez. Mas isso não era o mais importante. O mais importante são os detalhes, talvez por isso Cecília tenha optado por um perfume mais fraco do que por um mais forte. Ah, os detalhes. Antes de sair, se certificou de que tinha fechado todas as portas. Não era medo de ladrões, o medo real era de invadirem o seu íntimo, como já havia acontecido uma vez. Uma vez que pareciam tantas porque tantas não teriam doído como uma só. Há umas semanas bateram na sua casa pra perguntar se tinha alguém e ela já tinha ido. Pra longe. Pra onde for. Pra onde forem as flores.
No caminho, começou a pensar sobre como, para ela, o amor era a única coisa que importava na vida. Ela não tinha perdido a fé no amor, tinha perdido a fé nas pessoas. E enquanto suspirava com mais ar do que realmente existia em seus pulmões, percebeu que estava muito cansada. Muito cansada nem rompia com tal limite em que um ser humano podia chegar. Estava exausta. Teria chorado se por acaso se lembrasse como. Quando olhou pro céu, esperando encontrar por ali uma resposta que nunca tinha encontrado, o tempo fechou, começou a ventar muito forte, as flores, que antes pareciam vivas e cintilantes, tinham tomado o estranho aspecto de mortas. Começou a chover. Estava a pé e já muito longe de casa para voltar e pegar um guarda-chuva. Preferia chegar encharcada do que ter que regressar. Na verdade, sempre foi assim, os riscos faziam o seu coração bater mais forte. Além do mais, seu destino eram apenas mais 5 quarteirões à frente. Ela não iria voltar pra casa, não com aquele sinal dos céus. Voltar pra casa era como seguir em frente sem ter resolvido o passado. O amor era exatamente como a chuva. Lindo, mas poucos se arriscam a sair de casa e ficar molhados. Há os que usam as famosas capas de chuva. Ela nunca gostou de se esconder. Que a vissem assim, encharcada até a alma mesmo. Chovia demais. O amor é assim, de uma hora pra outra, de uma chuvinha fina, pra um pé d’água. Começou a chorar. Sem problemas, ela não ia voltar. Estava feia, com o cabelo bagunçado, rímel escorrendo. Como se isso importasse perto de um coração cheio de venenos e de remendos. Se sentiu suja como se tivesse levado um banho de esgoto e não de chuva. Porque queria, pela primeira vez na vida, ser vista como era. As pessoas colocam máscaras no seu rosto onde só existia transparência. Era a menina mais diáfana do mundo. Longe de ser a mais linda, mas era a mais real. Escorrendo, para na frente de uma casa marrom triste. Tão triste quanto ela estava. Toca a campainha, trêmula, morrendo de frio, e pergunta se ele pode conversar. Um segundo, ele diz. Quantos segundos um segundo apenas pode possuir. O tempo era tão triste quanto aquela casa marrom.
-Cecília! Meu deus! Entra, por favor, você vai ficar doente –diz Lucas
-Lucas, eu já estou doente, e não quero entrar nunca mais. Só preciso de 3 minutos, ok?
-Não consigo te ouvir com esse barulho da chuva!
-ENTÃO EU VOU GRITAR!
-Agora sim. Você sempre foi escandolosa mesmo. Estou acostumado –ele diz por entre a água da chuva, e Cecília teria tempo de notar o famoso sorriso triste se não estivesse tão desesperada para dizer aquilo que a estava cortando em pedaços. Triste. Triste. Triste. Triste. Essa palavra não é mesmo triste?
-Eu queria muito, Lucas. Eu queria muito não ter tido que voltar. Eu queria nunca ter ido embora, não ter mudado de cidade, não ter aceitado aquela maldita proposta. E eu sinto muito nunca ter conseguido te dizer adeus, mas você mesmo me disse uma vez, existem coisas difíceis de dizer,  como na casa da minha mãe, “não quero mais comer” ou “eu não amo mais você”. Mas sabe Lucas, qual foi a coisa mais difícil de dizer?
-O que, minha ruiva?
-A coisa mais difícil, e a que eu vim aqui pra dizer, é que eu te agradeço. Pelos dias mais felizes da minha vida. E te odeio por não ter lutado por mim, mas quem sou eu, que nunca lutei por você também? E sinto muito nunca ter dito adeus. Você merecia isso. Nós merecíamos isso. Eu te amo, eu só não gosto mais de você. Por esse rosto triste que eu vejo em você que é o mesmo rosto triste que eu guardei em mim.
-Cecília, cada gota de chuva caindo é uma palavra que tentei te dizer. Eu estava paralisado pela dor de ver você partir. Talvez por isso não tenha conseguido lutar. Você bem sabe que eu nunca fui muito corajoso. Eu sinto muito, ruiva. Sinto por tudo, eu também queria ter tido a chance de te dizer isso e...
Lucas começou a chorar. O que mais doía em Cecília, mais do que qualquer coisa no mundo, era vê-lo chorar. Tinha presenciado aquela cena tantas vezes e em cada uma delas parecia doer mais, então o abraçou. Molhados, tremendo, com medo, tristes. Lucas teve certeza, naquele momento, que aquela mulher era um furacão e ele era só uma chuva fina, mas por algum motivo louco ele sempre gostou de se molhar.
´-Adeus, Lucas.
-“Eu não quero mais comer” era mais fácil do que isso, Ceci.
-O quê?
-Adeus, ruiva.
As flores no caminho de volta pareciam vivas mesmo tristes. Ela estava seguindo pra trás, no caso, pra frente, sem nunca ter partido de verdade. E já que os detalhes são importantes: a única vez que tinha se sentido em casa era no caminho entre as duas casas. A casa marrom triste, as flores tristes, e mesmo assim, tudo mais bonito do que jamais um dia poderia ser. Era primavera.

“Quem sou eu para falar de amor, se o amor me consumiu até a espinha...”

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Borrado


La Tricheuse. | via Tumblr


Ficou uma mistura de ressentimento e tédio borrado pela desimportância que o silêncio tomou. A marca da procura da minha face em qualquer um desses espelhos quebrados. O pouco que sobrou foram umas lascas de vidro que custei pra encontrar o brilho. De tanto rastejar acabei cortando as palmas das mãos. Ficou a estranheza da falta da rotina, sorrindo calada um corte cruel. Foram-se doentes as minhas mãos geladas e paradas. Ficou o calor solitário de uns poucos instantes. Foram-se as paredes brancas, as fomes tantas, o medo do mundo. Ficou o grito do insulto, o sorriso imundo, as muitas palavras. Depois de tudo do nada, a alma gelada, a pele maltratada; ficou o veneno nas veias, a moldura perfeita e um anjo caído. Ficou o cabelo cortado, o perfume usado, todos os cheiros decorados. Foi-se a textura macia, a água da pia. Foi-se o abraço apertado, o pranto calado, o último recado. Ficaram-se os olhos roubados, o vermelho dos lábios, a pura falta do fim. A pergunta mais triste, na verdade, se o roubo do presente dava fim ao passado, era só a vontade de responder aquilo que nunca perguntei. Um anjo surrado, de porcelana, quebrado. O sonho roubado que ninguém me concedeu. Ficou a pergunta mais triste, se eu não tinha mais nada pra dizer: não naquele momento, afinal, algumas coisas não cabem nos nomes. Alguns nomes não cabem nas coisas. As asas nunca couberam no anjo e ele se espatifou no chão, sem fazer barulho, em menos de um segundo. E com ele, todo o peso do mundo.


(A tempestade, o mar calmo, e finalmente, um ri(s)o raso)

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

A única certeza


Eu tinha certeza de tanta coisa na minha vida. Certeza da mão quentinha nas minhas costas, certeza quando acordava de manhã. Certeza de você, quando você me ligava numa tarde qualquer. A gente se acostuma tanto com o sol nascendo de manhã que quando ele não nasce é esquisito. Quase engraçado. Mas não chega a ser porque existe uma linha tênue entre as coisas de verdade e as coisas que podem ser só sentidas com o coração.  Eu tinha certeza que não ia ser feliz nunca mais. Que bobagem. Que bobagem é a vida. Que estranho. Hoje joguei umas palavras fora (do computador) e tive certeza dessa frugalidade que é viver. Hilário. Quase entediante de tão louca. Hoje apagando essas palavras pensei no que minha terapeuta disse do martelo, dos pregos e da madeira. Se retirarmos os pregos da madeira, as marcas permanecem lá após anos. Ou quando um espelho inteiro lindo quebra e a gente tenta limpar com as mãos sangrando em busca de um brilho qualquer. Esse texto não é sobre nada em especial, só o fato de que eu hoje parei pra rir de como a gente tem tanta certeza das coisas e no final descobre que não era nada daquilo. As certezas são eternas enquanto duram. E engraçadíssimas quando passam. Vivemos em busca delas, pra ver se fincamos um pouco o pé no chão em meio a esse mundo que gira rápido demais. Mas meu pai sempre me disse que se a gente afunda o pé demais na areia a onda nos leva. É por isso que eu ando mudando os pés de lugar às vezes. Pra dar pé viver. Pra dar pé amar. Pra onda não levar. Meu pai anda um pouco cansado já pra me segurar quando eu tô com medo do mar. E nunca se sabe se os salva-vidas vão chegar a tempo. Bobagem contar com a sorte. A sorte é só mais uma dessas certezas equivocadas e de última hora que a gente coloca na cabeça pra não morrer afogado num oceano de dúvidas. Eu engasguei um pouco com o sal do mar pra aprender que eu não sou peixe. Mas minha vó sempre me chamou de sereia. Ah, que bobagem a vida. As coisas são tão efêmeras. Como as folhas que despencam das árvores num aceno tímido. E não voltam nunca mais. Temos certeza das coisas enquanto elas sorriem, abraçam, beijam. Temos certeza das coisas enquanto são, depois que elas apodrecem, murcham, não são mais. Nós e nosso mundinho de certezas. Certezas tão passageiras e subestimáveis. Coitadinhas das minhas certezas. Reguei com tanto amor. Como rosas que uma vez tiradas da raiz morrem em dias. Eu tinha certeza no quentinho das mãos todos os dias. Acostumei com as mãos geladas, que apesar de tudo, são minhas e são mais dignas. Um pouquinho que seja. Porque não quero ter certeza. Não gosto, não aprovo, não faço questão. Coitadinhas. Tão pequenas e imaturas que nem mereciam existir. Mas é necessário que existam porque viver sem elas é como viver sem a mão do meu pai no mar quando eu era pequena. Mesmo que eu tivesse que nadar um pouco pra alcançar. Porque eu tinha certeza que ia amar tanta gente pra sempre. E porque sou tão capaz de amar que minhas certezas tiveram ciúmes de mim. E me roubaram só pra elas. Porque amar não precisa ser pra sempre. Já foi. Mesmo não sendo. Só de ser amor já foi pra sempre. Sinceridade na alma é tudo, mesmo que o outro não tenha existido de verdade. E eu ri da minha falha. Eu brinco dessa coisa porque gosto de acreditar na eternidade como um véu de noiva que o noivo levanta pra beijar como se aquele fosse o único momento importante na vida. Porque eu achava graça do meu pai me dizendo que o mar ia me levar e eu sempre tive tanta certeza que um dia ia levar mesmo. Nem veio. O tempo passou e o mar nem veio mais. O tempo passou e é só isso. De novo. Não que algum segundo ou milésimo de segundo tenha deixado de passar. É só que, de uns tempos pra cá, ele tem passado rápido demais. Talvez por causa das dezenas de rosas que eu joguei no mar pra Iemanjá. Talvez o mar nunca veio porque eu nunca fui. E talvez eu nunca tenha ido porque tinha certeza que ele viria. Que azar o meu. Nunca contei com a sorte. Que bom. O tempo passou. É só isso. Minhas rosas estão no Pacífico, murchas, por aí, como as minhas certezas. Tinha tanta certeza do quentinho nas costas e do sorriso que aquecia as minhas manhãs, tardes, noites, certeza de que nunca mais fosse ser feliz, e a única certeza que eu tenho é que, infelizmente e super clichê, amanhã é mesmo outro dia. Até que a certeza do outro dia vire pó como o resto todo.